segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Sobre pássaros e meninas



A menina fitava o mundo com admiração, com a disposição clara de quem o desbravava. Caminhava pelas ruas fotografando as flores que encontrava pelo caminho e se sentia privilegiada por ter o dom da visão e ainda se surpreender com ele. Adorava os animais, dizia-lhes “bom dia!” sempre que cruzava com um (fosse um cachorro, um gato ou um percevejo) e os considerava mais uma mostra do dedo daquela força maior que certa feita criara o mundo. Alguns chamavam-na “Deus”, mas ela sempre se referia ao Universo (assim mesmo, com “U” maiúsculo), por considerar este o nome que abarcava o maior leque de possibilidades criadoras.
Mas a menina, como todos nós, aliás, não era perfeita. Com o passar dos anos, desenvolvera uma verdadeira ojeriza a pássaros. De qualquer tipo. De qualquer cor. De qualquer tamanho. Ela não conseguia mais amar os pássaros como amava todo o resto. Tudo porque, um dia, um pássaro branco, de aparência inofensiva, muito belo e sedutor, a ferira gravemente. Foi a menina doar o seu amor ao pássaro, como lhe era habitual e corriqueiro. Ele fitou-a com um olhar acolhedor. E, quando ela estendeu a mão para afagar-lhe as penas, o pássaro branco bateu as asas. Assustado, em pânico, querendo sair de cena. E, como forma legítima de se defender, bicou-lhe violentamente o peito e bateu as asas rumo ao nada.
A bicada logo sangrou, por ter-lhe sido profunda. E causou-lhe uma dor constante, pungente, por muito tempo. Demorou mais do que o normal para que cicatrizasse por completo.
Ela nunca mais fitou pássaro que fosse sem recordar do ferimento que lhe fora feito. A dor passou, o sangue estancou, mas a cicatriz ali ficou. Visível, latente e qualquer um que espiasse um pouco além do seu colo.
A menina sabia que não era bom temer os pássaros. E que, cedo ou tarde, o Universo (aquele, a tal da força maior que podia criar tudo no mundo) lhe cobraria a coragem da superação.
Certa feita, ela andava pela mesma rua cheia de flores e animais de todos os dias, quando tropeçou em algo que a princípio não identificara. Levou uma queda brusca e ralou braços e pernas. Quando finalmente recobrou o equilíbrio e se levantou, viu que tropeçara num pássaro. Branco. Seu velho algoz. Aquele, que lhe fizera sangrar o peito.
Gritou de horror.
Em seguida, entendeu porque ele jazia no meio do seu caminho: estava seriamente ferido. Sangrava por um corte no peito. Parecia sentir muita dor e tinha perdido suas frondosas penas das asas. E, pelo estado de seu machucado, já estava ali há horas, sem que fosse socorrido por viv’alma. Se não fosse devidamente cuidado, e logo, nunca mais voaria, na melhor das hipóteses.
A primeira reação da menina foi deixa-lo ali, à própria sorte, para que morresse à míngua. Mas não. Ela nunca seria capaz. Superou o medo, o asco, o trauma. “Ferido assim, ele não tem condições de me bicar de jeito algum” – pensou. Foi tomada por um sentimento inesperado e desejou que o vistoso pássaro branco voltasse a ser belo como quando o conhecera. Só queria cuidar dele. Cuidar, cuidar e cuidar. Do jeito que fosse possível. Não: do melhor jeito que lhe fosse possível.
Tirou o xale que lhe cobria as costas (fazia frio naquele dia) e enrolou o debilitado animal para que não entrasse em choque. O pássaro branco não sabia falar porque era pássaro. Mas, por dentro, apesar da dor e do frio, sentia-se agraciado. E não se achava digno de tamanha dádiva vinda daquela que ele feriu um dia.
Ela o levou para sua casa. Estendeu o xale sobre a mesa da cozinha e passou horas limpando suas feridas e arrancando-lhe as penas danificadas, para que outras novas e vistosas nascessem ali. Alimentou-o, deu-lhe de beber, acomodou-o em seu melhor cômodo da casa. Foi tomada pelo desejo quase obsessivo de vê-lo curado, bonito, forte e pronto para voar novamente. O pássaro, sentindo-se acolhido, pegou no sono. E a menina permaneceu ali, velando sua noite até o dia amanhecer.
Seguiu este ritual por dias: acordava, dava-lhe de comer, trocava-lhe os curativos, ministrava-lhe os medicamentos. Fazia-lhe carinho. Saía. Voltava. Repetia todos os procedimentos da manhã. E ficava com o pássaro branco até que ele pegasse no sono.
Quando se deu por conta, havia perdido o pânico de pássaros. E tudo que mais queria, quando saía, era saber que ele estava lá, esperando-lhe em casa, pronto para lhe receber.
Demorou, mas o pássaro branco recuperou a saúde, o viço e a vontade de voar.
Um dia, enquanto a garota dormia, foi a vez dele velar seu sono: pousou sobre a cabeceira da cama da menina, e ficou observando-a até que ela acordasse na manhã seguinte. Quando ela acordou, viu-lhe ali: bonito, curado, e pronto pra voar alto novamente, depois de tanto tempo:
- Vá, passarinho, cruze minha janela e voe pra vida.
Ele não foi.
Um raio iluminado de múltiplas cores adentrou a janela do quarto. Ambos sentiram-se cegos por alguns instantes e, quando a claridade voltou ao normal, o improvável acontecera: a menina, agora, também era pássaro.
Entreolharam-se e sentiram que era chegado o momento de alçar o maior voo de ambos até ali. Bateram asas até ganharem a mesma altura e cruzaram a janela rumo ao destino que só eles sabiam que forma teria. Só era o amor.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Das Nostalgias


Sou do tempo das coisas simples e mais gostosas da vida. De quando a gente tomava coca cola em garrafa de vidro, comia biscoito de camarãozinho na escola, sou de quando a correspondência era só via correios e a gente esperava ansiosamente pela carta.

Sou da época em que o mimeógrafo era usado para imprimir as provas escolares, a gente recebia o papel ainda molhado e cheirando a álcool. Lembro que na lista de material da minha escola tinha sempre o item: "Matriz roxa", as vezes vinha até a marca: "carbex".

Mas nada marca mais a minha infância do que a datilografia. No meu tempo, quem não tivesse curso de datilografia, era atrasado. Lembro que ao lado da minha escola havia um curso chamado "elite" e na minha cabeça infantil, enamorada e já romantizada pelos livros e pela escrita, toda e qualquer pessoa que adentrava os portais daquele maravilhoso curso, pertencia à elite, eram todos donos de um mundo mágico do qual eu não fazia parte. O barulho daquele curso era infernal e hoje mesmo ainda posso ouvir as onomatopéias das máquinas de escrever. O plec plec do teclado e o plim de quando a linha a ser escrita chegava ao fim. Era uma época em que a gente 'batia' textos e era tudo mais difícil, o "delete" era algo inimaginável.

Ah, quantas saudades desse tempo, recordo-me agora da máquina de escrever que eu ganhei quando fiz 8 anos de idade, era uma hermes baby portátil que eu guardo com carinho até hoje. Na época, custava uma pequena fortuna, foi meu  avô Adolpho quem me deu. Ele, quase um doutor em oratória dizia: - Esse meu neto será escritor e daqui sairão seus livros, também meus discursos políticos. Pobre vovô, da minha hermes baby nunca saiu nem o esboço. Eu nunca fiz um curso de datilografia, culpava isso pela minha falta de jeito em 'bater' meu livro. Mas naquela época, nos meus dourados e ingenuos oito anos, as ilusões eram permitidas e até acalentadas e eu imaginava minhas histórias publicadas em livros. As histórias se desenhavam na minha cabeça, nítidas e vívidas como meu lego e meus bonecos de comandos em ação. Minhas histórias mirabolantes cresciam em mim, eu contava e recontava, montava, remontava e desmontava quando tivesse vontade. Eram belas histórias, mas a hermes baby nunca contou nenhuma delas, nenhum sonho, nenhum devaneio.

Hoje eu olho a minha máquina de escrever, velha, sem fita de tinta, empenada, aposentada pela era digital, pela velocidade da internet, pela facilidade do delete e pela milagrosa invenção do backspace. Fico me perguntando que histórias eu escreveria naquela época. No homem de hoje, sobrou pouco do menino de outrora, no entanto a paixão pelas escritas existe. Será que se eu tivesse usado mais a minha máquina de escrever, eu teria virado um doutor das letras? Ou será que eu seria mesmo esse que hoje se senta diante de uma tela de computador e tenta parcamente reproduzir sua época mais feliz da vida?

De qualquer forma, ainda sou aquele menino de olhos curiosos, com a cabeça no mundo da lua e romântico, ainda sonho escrever meu livros, ainda quero ser um escritor, um mero contador de histórias e estórias de um mundo encantado pertencente somente a aqueles que sabem sonhar de olhos abertos.

domingo, 25 de setembro de 2011

Castanhos e verdes. Olhos.

Sentou-se na areia. Não se importou de sujar o longo vestido branco. Na verdade, pela primeira vez, não importou-se com a areia. Escutou o mar indo e vindo e o rumor como que estalou dentro de si mesma. A brisa bagunçava seu cabelo. Também não importava. Era um dia diferente e nada pequeno importava. Havia um sentimento de completude e abandono naquilo tudo. Uma amarga felicidade de quem chegou a algum lugar e parece nem ter mais aonde ir.
Fechou os olhos para sentir o cheiro liberto de sal que emanava. Cerrar visão sempre resultava em algo mais profundo na moça. Ela sentiu como um borbulhar de champagne por dentro e por pouco achou que entraria em ebulição. Respirou. Profunda e vagarosamente. Buscou abrigo nas reminiscências.
Daquele lugar, duas imagens lhe sequestravam. Sentiu-se fragmentada no rapto, mas deixou-se levar.
Viu, então, mais uma vez, aquele dia de inverno impune. Com o mar a ensurdecer as vozes. Com o vento a roubar palavras. Sentiu o cheiro almiscarado na pele próxima. Sentiu aquela sensação angustiante de não tocar, ao tocar o intocável, mesmo quando se tocaram pela primeira vez. Eles eram corpos absurdamente reconhecidos em almas distantes e rebeldes. Não se lembrava muito de tudo que veio antes ou que viria depois. Lembrava-se apenas daquele pequeno instante em que sentiu seu olhar sobre ela. Um pouco de nudez lhe vestiu a pele apenas com aquele movimento ínfimo das suas pálpebras. Talvez as mãos dele lhe houvessem tocado. Talvez tenha sentido a barba a lhe roçar o rosto. Talvez. O que ficou, foi o pousar daqueles olhos. Aqueles olhos verdes. Pela primeira vez, naquele instante, acreditou que os estudiosos de cor haviam se enganado. Verde era cor quente. Verde que derretia em ondas de lava ao olhá-la. Sentia aquele calor todo lhe inundar a alma, ainda que lhe esfriasse, o vento pelo corpo. E então, como em todas as vezes que se lembrava - quiçá tinha sido assim de fato -, sentiu um redemoinho do vento a lhe envolver as entranhas todas e olhou, mais uma vez, talvez a derradeira vez, para aqueles olhos de suas lembranças. Verde era cor fria e dele saíam pequenas lágrimas cortantes de gelo.
Raptada, como sempre, por outra memória, viu-se no mesmo lugar. A noite chegava. O sol ia embora fazendo estardalhaço em laranjas, vermelhos e roxos, impunes e contentes. Não havia música, mas ela escutava uma que lhe vinha da alma. De ambas almas. Desta vez, sentiu as mãos a lhe envolver o corpo todo. Sentiu que ele lhe sugava o perfume ávido. Ouviu as palavras todas afoitas e de calão adorável. Entregou-lhe a alma e o corpo naquele momento, sem nem saber no que ia dar. Tocáveis. Deixou que ele fosse o dono do seu corpo. Do seu sorriso satisfeito. Olhou dentro daqueles olhos de mel adocicado e sentiu-se envolvida. Aqueles castanhos seguros de si, pacientes e insistentes. Sabia que ia deixar-se ali, sem resguardo. Eram de fato, quentes, nem a ciência lhe negaria isto. O corpo todo dele corroborava o calor. Percebeu aqueles olhos de menino lhe descobrindo sorridente. Sentiu o cabelo dele entre suas mãos e sorriu. Estreitou aquele rosto conhecido e deixou-se penetrar pelos seus próprios castanhos por aqueles castanhos. Mãos e braços e pernas que queriam mantê-lo próximo, justaposto, dentro. Era primavera, mas ela não viu as flores. Era flor.
Voltou à realidade como se um fio de prata lhe puxasse de volta àquela tarde de outono. Voltou ao vestido maculado pela areia. Era o beijo na nuca que lhe trazia de volta. Sentiu o beijo lhe descer um pouco mais pelas escápulas nuas. Ouviu murmúrios inaudíveis de um sotaque conhecido. A mão direita dele lhe afastava os cabelos pra deixar a pele livre de obstáculos. Como na música, sentiu o paletó enlaçar o vestido. Então viu a mão esquerda que vinha de suas costas, pousar em seu seio esquerdo. A mão de dedos longos que ela já conhecia, desde sempre. A mão que nem se importava mais com o vestido. E sem olhar para os olhos, soube de que cor eles eram.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Aos meus amigos

A gente não sabe explicar como nasce uma amizade. Quase sempre não percebemos quando aquele conjunto de afinidades se transformou em um laço forte, indivisível. Na verdade, pouco importa o tempo da amizade, não se pode contar de forma cronológica, mas de todas as vezes que se pode contar com o outro para um abraço, uma risada, as broncas (porque amigos não nos poupam da verdade), os silêncios que não se explicam, nem precisam de justificativas.

Eu sou um homem de poucos, mas de grandes amigos. A maioria dos meus amigos são de infância e/ou de longa data, cultivo minhas amizades com esmero e muito zelo, porque acredito que amigos a gente não conquista, a gente reconhece. Os amigos que reconheci pela vida estão comigo sempre, mesmo que nossos caminhos nos coloque em outras direções, a gente sempre acaba se encontrando e participando ativamente da vida um do um do outro.

Li em algum lugar, que um amigo não precisa ter cara, basta coração enorme, olhos atentos e ouvidos solidários. Eu concordo e me lembro com isso, daqueles amigos que a tecnologia uniu, aqueles que respondem erroneamente pelo nome de amigos virtuais. São pessoas que compartilham contigo seus dias, suas vitórias, tristezas, amigos que te fazem rir e chorar e estão alí até mais próximas que muita gente do mesmo lado da tela. E eu fui agraciado nesse mundo de cliques com bons amigos.

Este blog nasceu de uma grande amizade de cliques, de gente que nunca precisou se ver pra se reconhecer. De pessoas que se amam e dizem isso sem qualquer medo de ser mal interpretado. De gente que está distante somente geograficamente, porque as almas já se encontraram há tempos. Não nos conformamos com essa distância, nem quero dizer que nos basta sermos amigos assim. Não é verdade, sentimos a falta física, e as vezes ela dói quando tudo o que precisamos é de um abraço apertado. E como precisamos disso, né? Precisamos muito disso e nem todos os abraços do mundo supriria nossa falta eterna.

Queria aqui agradecer aos meus amigos por todas as manifestações de carinho e zelo comigo em todos os momentos, mas principalmente nos mais difíceis, que são quando as amizades verdadeiras reluzem com maior brilho.

Deixo aqui meu beijo especial para as companheiras de blog: Cristiane e Amanda, para a  "namorada" Rosana Meyer e pra Claire ( maior incentivadora do meu "namoro" com a Rosana)

Amo todas vocês, por tudo.


terça-feira, 30 de agosto de 2011

A.

Minha mãe escolheu meu nome porque, segundo ela, achou o significado “forte”: “digna de ser amada”. Confesso que também o acho.
Gosto do silêncio, das paredes violeta do meu quarto, da minha bagunça organizada de livros, CDs e DVDs. Gosto das fotos espalhadas pelas paredes dele, que me fazem me lembrar de pessoas e momentos que levo sempre comigo.
Odeio acordar cedo. Gosto de ter tempo para despertar, enfiar bastante a cara no travesseiro e sentir a textura do edredom se despedindo da noite. Tenho uma mania quase doentia de não me desgrudar nunca do meu celular, que dorme comigo, na cabeceira da cama.
Acordo de mau-humor e odeio essa minha característica. Quem trabalha comigo já sabe e (às vezes) entende.
Adoro café, cerveja e água, muita água. Detesto água com gás e suco de goiaba. Não como tomate e nunca comi. Tolero no vinagrete e no molho, e só. Sou doente por chocolate e ele me serve como um alimento genérico: se estou triste, como chocolate. Se estou feliz, como chocolate. Se estou entediada, como chocolate.
Respiro música. Miles e Coltrane me fazem entrar em outra dimensão. Elis e Bethânia me levam pra dentro dos meus sentimentos mais confusos, e, nessas horas, nem sinto tanta frustração assim por ser confusa (coisa de capricorniano com ascendente em Gêmeos), só pra poder cantar com alma, mesmo que seja só pra mim mesma.
Tenho uma tendência extrema à melancolia, e, muitas vezes, sou mal-interpretada por isso pelas pessoas que vivem comigo. Sou prática, mas delicada. Romântica, mas realista. Carinhosa, mas agressiva. A garota-dicotomia.
Sinto uma alegria imensa quando ganho um sorriso de alguém assim… de graça. Sinto uma alegria imensa quando vejo que um aluno entendeu algo que acabei de ensinar. Sinto uma alegria imensa quando abro o horizonte literário-musical de alguém sem ter pretendido fazê-lo. Sinto uma alegria imensa quando vejo um artista subir ao palco, em grande parte, porque eu contribuí para tal.
Adoro abraçar e ser abraçada. Não beijo ninguém meramente por educação, realmente encosto os lábios nas bochechas alheias e já percebi que nem todo mundo vê isso com bons olhos. Adoro olhos, sorrisos e mãos, e me valho deles para entender em parte a complexidade do ser humano.
Tenho mania de ficar tentando me identificar nas músicas que escuto, e sempre separo trechos que me interessam, como se, futuramente, eles pudessem contar um pouco mais pras pessoas como é que me sinto. Adoro saber falar francês e sei que preciso estudar mais inglês. E aprender espanhol. E alemão. E música.
Ando entediada com o ser humano, mas quero acreditar que um dia isso há de passar. Minha família é tudo pra mim. Por eles, sou capaz de bater e apanhar. Meus amigos são meu porto-seguro e, sem eles, seria certamente uma pessoa muito mais áspera e amarga.
Fui uma criança adultinha, uma adolescente adultinha e sou uma adulta adultinha que se cobra o tempo inteiro. E que sofre muito por isso. Já fiz terapia. Foi bom e pretendo voltar quando sobrar uma grana.
Quando amo, amo com toda a minha verdade. Por isso meus amores são raros. Nunca fui de ter envolvimentos rasos nem amores platônicos. Sempre fiz questão de dizer ao outro tudo o que sentia; por isso, também, já fui bastante ferida.
Se os sentimentos se tornam maiores do que posso suportar dentro de mim, pego caneta, papel e escrevo. Seja por amor ou por ódio. Simplesmente escrevo; mas não me considero poeta e nem o pretendo. O poema mais verdadeiro e intenso que já escrevi foi para um grande amor que hoje está longe de mim, mas muito mais perto do que acho que ele possa imaginar. O grande amor. Grande e triste em sua medida.
Sou curiosa e adoro tecnologia.Sou mimada pela minha avó e não tenho o menor pudor de admitir isso. O maior sonho que realizei, até hoje, foi conhecer Paris, e sem gastar um único Euro.
Tenho muita fé e sei que minha sensibilidade (ou intuição, ou sei-lá-o-quê) é bem aguçada e que devo tomar cuidado com ela.
Sou vaidosa à minha maneira. Sei que nunca vou ser magra, mas valorizo o que julgo mais bonito em mim. Gosto de ser ruiva, de manter meus cabelos curtos e as unhas sempre bem cuidadas. Adoro esmalte vermelho, mas também gosto das nuances do lilás e do rosa. Acho todas as pin ups lindas e fico lisonjeada quando uso delineador, batom vermelho e me dizem que lembro uma delas.
Não sei como vivi uns bons anos sem Internet e IPod. Amo Cinema, mas não banco a entendida e assumo a todos que gostaria de saber muito mais do que sei sobre esse assunto.
Tenho um grande carinho por Santo André, mas sei que meu lugar não é aqui. Amo São Paulo, com suas nuances de cinza, de gente e de cenários. Amo muito o Rio de Janeiro e algumas pessoas que lá estão. Muito. Sinto uma saudade dolorida de lá todos os dias, sem exagero.
Quero ter pelo menos um filho e dois cães. Minha vida ficou bem mais colorida depois que adotei a Maya, minha cadela.
Sei dirigir, mas não gosto, acho estressante demais. Porém, tenho consciência de que uma hora vou ter que me render ao sistema e me jogar no volante pelas ruas.
Não sei como me imagino daqui a dez anos. Só sei que quero ser muito feliz, seja lá o que isso signifique. Um dia, eu descubro. Quem sabe. Mas quero continuar sendo, pelo menos, essa pessoa que hoje sou: cheia de amigos, de boas lembranças, rodeada de livros, de músicas e de um coração meio cheio e meio vazio, como o copo daquela metáfora gasta.


Amanda Souza
Maio/2010

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O ecrã amargo


Acordou atordoada, com a sensação de não saber onde estava. A primeira coisa que sentiu foi vontade de fumar. Uma vontade uterina, quase. Tentou ignorar o apelo da fase oral. Lembrou-se porque estava aborrecida. Lembrou-se, exatamente, de onde vinha o motivo perturbador que lhe fazia ter picos extremos de sono e insônia. Que horas eram? A luz indicava uma semi-aurora ou um por-do-sol. Que horas havia deitado? Ignorou também esta curiosidade. De fato, sentiu desejo de ignorar tudo.
Pegou o celular que repousava ao lado da cama e abriu o jogo preferido. Absurdamente, nonsense. As bolinhas coloridas a explodir como bolhas de sabão lhe afastavam pensamentos. Bons ou ruins. A pontuação foi extraordinária, o que lhe trouxe o pensamento sarcástico: "sorte no jogo, azar no amor". Decidiu jogar mais uma vez. Certamente, não melhoraria o ardor nos olhos. Muito menos a dormência nas mãos. Jogou mais uma vez. Pontuação baixíssima. Teve vontade de rir. Aquele riso de desespero ignóbil e controlou-se. Ironicamente, uma lágrima lhe caiu dos olhos. Enxugou-a, diligentemente e notou que havia chorado em sonhos. Quis xingar. Não conseguiu. Estava sozinha e ela tinha perdido o hábito de xingar o Universo. Na verdade, tinha perdido o hábito de explodir em impropérios. Ele lhe ensinara isto. Isto, de tudo aquilo. Tantas coisas, dentre muitas.
Ela sabia o que era aquilo tudo. A ansiedade a lhe comer o fígado, a lhe perturbar as idéias, a lhe transtornar o apetite, as vontades, o sono, a clareza. A enxaqueca, em breve, bateria-lhe às portas, inquilina fiel e constante, nos últimos tempos. Olhou a cachorra, dormindo placidamente, sempre ao seu lado. Isto é lealdade, de resto nem pela dela apostaria as mãos no fogo. Espreguiçou-se e conteve-se no estiramento. Ia pinçar a coluna pelos estalos crocantes de seu esqueleto em frangalhos pelas noites mal dormidas, pela palpitação cardíaca.
Os lábios estavam ressequidos. Estava desidratada, provavelmente. Levantou-se em busca da velha coca-cola. No caminho, encontrou-o. O ecrã. Odiava aquela palavra, em suas vísceras. Encontrara o portátil, mas agora só via o ecrã. Passara a nutrir ódio por ele. Na tarde passada? Na semana passada? Não sabia. Bebeu o refrigerante, desafiando com o olhar, o eletrônico. Desligado. O estômago reclamou. Não iria comer. Sabia o que resultaria.
Pegou o maço de cigarros e sentou-se de frente para o inimigo. Acendeu o mais placidamente que podia. Sentiu que as pernas começavam a balançar, na aflição interna. Respirou. Ligou o aparelho. Observou calmamente a tela brilhante a lhe desafiar. Cruzou as pernas. Elas dormiram. Bravo! Não havia alternativa.
Então, a torrente veio e com ela a coragem. Escreveu, soluçando, o que talvez não devesse. Escreveu para si. Para limpar a alma. Quis olhar e-mails, redes sociais, mas seria inútil. Quis atravessar o maldito ecrã ao final e se transportar para onde deveria estar. Quis gritar que aquilo não fazia sentido. Mas não gritava mais. Tinha se educado, por ele, a conter o tom que o assustava, sem necessidade. Era o tom do sangue que lhe queimava, apenas, mas o que não se faz por alguém que se quer bem?
Finalmente, veio a segunda fase, temida, que ela afugentava como um mau agouro. Milhares delas pelo rosto. Quis ser outra pessoa para abraçar a si mesma. Deixou-se ir até seu limite. Ou além dele. Respirou.
Entrou na ducha, como a mãe lhe havia instruído pela vida: "Toma um banho, que passa". Vestiu-se, perfumou-se, maquiou-se. Dirigiu-se à porta e olhou ao espelho. Tudo isto para ir ao mercado?
Comprou ovos, iogurte, creme de leite e beringelas. Com "j" ou com "g"? Ao pagar, como a caixa lhe questionasse com os olhos, a demora em achar as notas, soltou, despudoradamente: "Não me julgue. Eu supero o ecrã. Não supero o que está além dele. Nem quero superar. Grata." E saiu sorrindo, amarga, mas com aquela certeza, quase vingativa, que tinha dito a verdade. Tão somente a mais pura verdade.

*ecrã: no português de Portugal, significa tela do computador, display, monitor.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Outubro vazio

Abri os olhos sem pressa de acordar. A lembrança que serviu de ponto de partida para o domingo foi o bolo que levei de Bia na noite anterior. Fechei os olhos, tentei dormir. Não deu certo. Passava das onze horas, dormira o suficiente. A luz que penetrava pelos minúsculos orifícios da persiana era débil, quase ausente, acompanhada do ruído da chuva, que eu não estava certo se era ouvido ou suspeitado.

Depois de alguns minutos de luta contra a realidade, decidi levantar e preparar o café. Enquanto esperava o gorgolejo da máquina, peguei o jornal na porta e fui escovar os dentes. O que vi foi um sujeito que pelos cabelos e expressão fisionômica lembrava um dos irmãos Marx. A lembrança surtiu um efeito melancólico ao invés de cômico. A máquina avisa que o café está pronto, o cheiro estava bom, mas a boca estava amarga.

Minutos antes, quando estava para acordar, antes mesmo de abrir os olhos, uma imagem tentara abrir caminho entre as remanescentes do sonho, mas foi contida pela atenção dispensada à luminosidade cinzenta do dia e ao ruído da chuva. Enquanto escovava os dentes, voltou a se insinuar, mas foi cortada pela visão melancólica de Harpo Marx. Agora irrompia com toda a força, ocupando o espaço da vigília. Bia Vasconcelos sentada ao meu lado para o café da manhã, andando pela sala, pegando um livro ao acaso, escolhendo uma música. A visão durou apenas alguns segundos.

Tentei invocar novamente a imagem de Bia, em vão. Talvez o problema fosse aquela sala. A diferença em relação ao seu apartamento era impressionante. A sofisticação clean da designer e o amontoado barroco
do médico comprador de livros. Levantei-me da mesa e fui novamente me olhar no espelho. Voltei à sala. A mesa colonial, o sofá e as poltronas de almofadas soltas, herdados dos meus pais e ainda com a forração original, os quadros e os chamados objetos de decoração, isso somado à imagem no espelho, ficou a sensação de que Bia e eu habitávamos universos paralelos.

A sala do meu apartamento tem uma pequena sacada com apenas dois palmos de largura e dois metros de comprimento. A vantagem desse detalhe arquitetônico é que, ao invés de janela, a sala tem portas de vidro e de venezianas dando para fora. Abri as duas bandas, mesmo correndo o risco de deixar a chuva molhar o tapete, para ver se, com mais ar circulando, meu estado de espírito melhorava. O que houve foi um encontro entre a exterioridade do dia e minha interioridade, ambas cinzentas.

Peguei mais uma xícara de café na cozinha. Fazia tempo que deixara de fumar, e aquele era o momento em que a falta era mais aguda. Há pessoas que, apesar de abandonarem o vício, mantêm um sempre à mão. Não era o meu caso.

Depois de abrir a porta da varanda, eu retornara à mesa para continuar a leitura do jornal, entrecortada pelas divagações e consulta ao espelho. O cinzento do céu misturava-se ao do prédio do outro lado da praça. A chuva ficou mais forte e um vento sudoeste começou a empurrá-la para dentro da sala. Levantei-me mais uma vez e fechei as portas de vidro, deixando as venezianas abertas. Vaguei pelo apartamento. Uma quarta xícara de café estava fora de questão.

A chuva diminuíra um pouco, permitindo que eu abrisse a porta de vidro da sacada. Uma consulta à geladeira revelou que restavam dois congelados: talharim à bolonhesa e talharim à bolonhesa. Escolhi o primeiro e guardei o segundo para o jantar. O domingo prometia ser eletrizante, como todos os domingos. Após comer o primeiro talharim à bolonhesa sem mesmo me dar ao trabalho de tirá-lo da embalagem, dediquei as três horas seguintes à leitura de Vida e aventuras de Nicholas Nickleby, que comprara no sebo. Pouco depois das cinco horas da tarde, o telefone toca pela primeira vez. Era Bia. Desculpando-se por não aparecer ao nosso encontro. Disse que seu ex namorado havia procurado ela para uma conversa, não havia dado tempo de desmarcar comigo. Deixamos um próximo encontro em aberto, mas eu não estava empolgado como estivera ontem. Ser trocado é ruim, pelo ex, é ainda pior. Desligamos o telefone.

Não gostava de outubro e não gostava de domingo. Outubro estava começando num domingo. Pior do que isso só se a segunda-feira caísse num domingo. A chuva recomeçara, e o melhor a fazer era esperar a hora do segundo talharim à bolonhesa.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Borboletas no ventre

Foi ao casamento por ir. Não esperava. Não imaginava.
Trânsito de cidade grande faz atraso de noiva parecer delicadeza do relógio. Na porta, socializava, porque é o que resta à sociedade e aos amigos de bem, enquanto esperavam.
Então, viu o moço. Disseram que eles já se conheciam. Não lembrava. Sentia. Sentia-o em seu estômago por toda a vida. Borboletas farfalharam, impiedosamente, em seu ventre. Sorriram e se olharam. E mais uma vez, sorriram e se olharam. Pensaram que se cansariam. Não cansaram.
Do altar, ele, padrinho, observava-a. E ela, enxergava-o em sua totalidade, sem pudores. Borboletas.
Não ouviram uma frase sequer do sermão. Não se emocionaram com o enlace. Não foram tocados pelo brilho das alianças. Eles estavam em uma redoma particular magnética. Borboletas lhes enlaçavam.
Dançaram. Como se não houvesse nada além. Como se não houvesse ninguém. Nem o ritmo kitsch de Right Here Waiting os afetou. Talvez porque eles esperavam, ali, exatamente isto, sem sequer saber.
Acordou, com o cabelo ainda penteado do casamento, em ambiente desconhecido. Meias 7/8 ainda lhe vestiam. Somente elas. Olhou ao lado e viu-o. Despido. Ofegante. Dormente. Lindo. Lembrou-se da noite terminada em hotel pra saciar a sede. Lembrou-se dele tocando Strangers in the Night, ao piano do lobby. Comoveu-se.
Desesperada, com tamanho sentimento, quis fugir. Acordou-o. Geminiano não aceita fugas, exceto as próprias. Ele a enlaçou mais uma vez e as borboletas, suas eternas inquilinas, obrigaram a novo encontro. E outro. E mais outro.
O sol reclamava seus corpos de volta. Relutantes, saíram. Magoados que a luz os houvesse impelido a procurar a janela da redoma.
Fez-se dia. Fez-se realidade. Fez-se separação. Ele, indignado, repetiu o que a pele suada lhe obrigara a dizer. Somos amor. Somos mais que uma noite. Ela, assustada, gritou o que o coração negava. Somos noite.
O avião, pássaro malvado metálico, levou-o embora, na tarde que se seguia. Ela, covarde, temerosa, permaneceu enlutada no quarto escuro. Ela e as borboletas. Ele voou com a lembrança de todas elas ao seu redor.
O tempo passou. As borboletas enclausuraram-se em lagartas, contrariando a natureza da vida. Vez ou outra, o telefone toca. Ninguém fala. Ouve-se a dor esganiçada do desperdício e as teclas do piano, soando Strangers in the Night. Para sempre. Para nunca mais.
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Sonhos de amor numa noite de primavera

Minha última noite, aqui. A brisa da primavera roça as flores, apenas chegadas na varanda. Meus olhos marejam, mas é preciso seguir em frente. De pé olhando a cidade adormecida, revejo meus passos. Choro.

Deito. O cansaço me embala rapidamente em sono profundo. É então que te vejo.

Eu, deitada, na cama em desordem, semi-nua, atordoada de sono, de olhos entreabertos. Tu, com a samba-canção a te ritmar, olhar compenetrado, sentado a minha frente, na poltrona, a buscar o soneto certo, indubitavelmente.

- Perdeste o sono?

- Achei os versos. É diferente.

Ergueste os olhos claros e profundos. Buscaste fazer teu sorriso mais bonito, numa fração de segundo que durou toda nossa vida. Olhaste-me com a mais profunda ternura e cheio de embevecimento.

- Encontras inspiração, nas horas menos possíveis, amado.

- Acordas, quando te prefiro dormindo, vida: teu sono repara o que te causei e eu resto vaidoso.

Ri. Poderia permanecer a te olhar por toda uma vida.

- Preciso deitar em teus braços para me reencontrar com Morfeu.

- Se te dou meu corpo, dormes outra vez?

Assenti, sorrindo.

Sentaste desajeitadamente, mas parecias cômodo. Enlaçaste-me com um braço e uma perna, deixando livre metade de ti para escrever. Cantarolaste baixinho, com tua timidez costumeira, mas deslocada em teu amor maroto.

- Vais dormir, agora, vida.

Te obedeci, como teu tom demandava. Abro os olhos, envolta em breu. Não tivesse te obedecido, não fechava os olhos para os abrir aqui no vazio deste lugar.

Levanto-me. É a despedida perfeita da vida que não é mais a minha. Acendo o cigarro e me dou conta que nos nossos encontros, eternamente oníricos, sempre falamos em segunda pessoa. Seria assim se houvesse, algum dia, olhos nos olhos? Penso se teu sonho quase sempre tão real vai comigo na nova jornada, então sinto uma carícia leve na pele. Alguém desavisado diria que é o frio da madrugada. Mas eu, eu sei que é teu paletó buscando enlaçar meu vestido, respondendo-me que vais comigo.

Saudade tua, Chico. Sorrio.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Encontro entre amantes

O encontro dos dois é esperado, muito ansiado e ela vem. Vem com o sorriso tímido e olhos brilhantes, jeito de quem sabe o que quer, mas não sabe como conseguir.

Ele apenas a acompanha com os olhos enquanto ela senta no tapete de frente a ele. A mulher que está diante dele transmite calma, é como se o mundo inteiro ficasse suspenso, inerte, em camera lenta e insignificante.

Eles apenas se olham, há muito a dizer e o silêncio grita enquanto o fogo lhes consome internamente. Visivelmente o desejo de possuir-se mutuamente domina o ambiente, a atmosfera quase sexual os cerca e nenhum dos dois quer sair dalí.

Ele se aproxima da mesa de centro - único objeto concreto que os separa - enche a taça de vinho dela. Um fio dourado de seus cabelos escorrega e repousa sobre seus olhos da cor do mar. Ela faz que não percebe. Parece um sinal e ele se aproxima. Ela continua inerte, hipnotizada pelos olhos dele que refletiam toda a chama existente dentro dele. Ele a deseja. Ela sabe disso. Ela o deseja. Eles gostam desse jogo silencioso.

Suavemente ele afasta o fio de cabelo e com a ponta dos dedos toca sua pele, um arrepio fino e quase eletrico percorre pelo seu corpo e ela também sente isso. Alí próximos, respirando o mesm ar, sentindo seus hálitos cálidos e vibrantes, enfim se renderam aos lábios como se fossem imãs.

O beijo voraz era como se abrisse as portas para um mundo novo. Os corpos uniram-se e os corações numa perfeita simetria ditava os passos daquela dança. Naquele espaço pequeno, sobre o tapete da sala dele, com a brisa fresca de uma noite de outono, desprenderam-se de todo o pudor. De novo o mundo desapareceu e de repente só existiam eles.

Amaram-se como se o presente ato fosse uma sobrevivencia, como se o sexo entre eles fosse vital. E era...Estranha e mais que fisicamente os corpos pertenciam um ao outro.

Sexo calmo e devagar como se tivessem todo o tempo do mundo, o corpo era explorado como se já se conhecessem, eles sabiam o caminho, sabiam seus ritmos e sensações. Viraram aos poucos um emaranhado de corpos. Avidos, antagonicos de um só querer, protagonistas de um espetáculo. Mãos, lingua, dedos, lábios, seios, suor e desejo culminaram no ápice da de uma odisséia há muito esperada. Depois, desaceleraram, o mundo gradativamente foi tomando forma, estavam alí, de volta à sala, ao tapete, à brisa e à lua que sorria. A única fiel e silenciosa testemunha de um ato simbólico de entrega e redenção, um elo secreto e invisível que nenhum dos dois nunca ousaram quebrar.

Texto originalmente postado no átimo

domingo, 1 de maio de 2011

Sobre os domingos que se seguiram

Então, há 17 anos as manhãs de domingo ficaram mais vazias. Acabou tema da vitória, acabou fumaça de cigarro pela sala. Acabou Ayrton Senna do Brasil.

Eu me lembro daquela fatídica manhã chuvosa de domingo, meu pai chorando, meus olhos incrédulos. Aquilo não era para ter acontecido e a partir dalí, todos os domingos que se seguiram foram diferentes, e eu nunca fui o mesmo, nada nunca mais foi igual. E eu guardo a morte do Senna como um marco na minha vida, maior que da história do automobilismo mundial. Pra mim, existe vida antes Senna (a.S.) e depois do Senna (d.S).

Minhas memórias a.S. são infantis, pontuadas pela convivência familiar. Meu pai, viciado em esportes, apaixonado pelo Ayrton Senna, me acordava de manhã, de madrugada, sempre falando baixinho no meu ouvido: - 'Acorda filho, o Senna vai ganhar mais uma'. E eu ia de pijama, sentava no sofá ao lado dele, tomava meu nescau,muitas vezes eu acordava antes de ele me chamar, mas fingia dormir pra não estragar o momento, ele fumava um cigarro, tomava café.

Quando acabava a corrida, era quando eu tinha meu pai só pra mim. Talvez eu amasse tanto as corridas de F1 por causa da companhia do meu pai nos domingos. Médico, diretor de um hospital, tinhamos muito pouco juntos. Era alí naquelas manhãs preciosas que guardo minhas memórias. Nas manhãs sem fórmula 1, ele não me acordava e eu dormia e lamentava o dia todo, pelas horas desperdiçadas, por menos companhia. Nós conversavamos e ouviamos música o domingo todo, era o nosso momento. Nosso dia.

Alguns domingos vazios após aquele 01/05/94 eu arrumava minhas malas e saía de casa, rumava para uma vida totalmente diferente. Começava a minha vida d.S. Viver sozinho, aprender a crescer e eu não sabia que seria tão difícil. Durante alguns anos eu acordei sobressaltado nas manhãs de domingo, pensando ter ouvido a voz do meu pai, imaginando ouvir a voz grave de Maysa, sentindo o cheiro acre de seu cigarro. Nunca mais tive manhãs de domingo com meu pai. Minha rotina me impedia de voltar ao Brasil, sua rotina o impedia de me visitar. Nos viamos esporadicamente e nas férias, tudo era tão tumultuado, rotinas tão diferentes e os domingos ficaram para trás, junto com as conversas, junto com Maysa, Senna e cigarros pela manhã.

Todo domingo de F1 eu morro um pouco. Todos os domingos que se seguem desde aquele primeiro de maio destoam borrados, insignificantes e ridiculamente pequenos diante da grandiosidade das minhas memórias. E a cada vez que ouço o tema da vitória fico engasgado, arrepiado e incomodado. Ele me traz ao coração um tempo que não volta, põe nos meus olhos a visão do meu pai que eu nunca mais tive.

sábado, 30 de abril de 2011

Do ressentimento inédito


Ela não queria sair. Por que sair se encontraria os olhos negros emoldurados em mau-gosto? Não obstante, forçou-se.
Como nada na vida pode ser morno, sua noite já começou estraçalhando suas reservas de uma só vez. Começou sendo impelida a cumprimentar a moldura que não lhe agradava. Sentiu um gosto irreconhecido nas entranhas. Gosto de ressentimento. Podia dizer da outra, que devia tirar de si mesma aquele rabo de cavalo eterno e mal-feito. Podia concluir, que ao fim, o rabo lhe caía bem com sua cara de cavalo pouco delicada. Ou que seu sotaque lhe conferia certo charme burguês. Decididamente, podia afirmar que as barras da calça deveriam ser feitas: aquele amontoado de tecido grosso no fim daquela pernas - não longas o bastante - eram deselegantes. Trocaram olhares e sentiu nas entranhas, aquilo que nunca se sabe de fato, mas se intui. Ela sabia. A outra também. Então, a moldura retirou-se de maneira quase imperceptível do cenário e deixou nossa mocinha angustiada, mas respirando.
Sentou-se com uma long neck, que bebia a grandes goles como se uma sede imoral lhe queimasse a alma. Pensava, distante, que finalmente sentia aquele tal de ressentimento lhe amargando a boca. Quantas vezes não deve ter sido o objeto deste mau agouro de outras mulheres? Ela mesma, não se lembrava de haver sentido. Não competia, ela. Vencia. Quase sempre. Passado. Sentiu um frêmito que lhe interrompeu as ideias. Eram seus olhos negros que buscavam com lábios sociais cumprimentar sua bochecha. Foi questionada, sorridentemente, qual motivo de seu olhar de soslaio. Cinicamente negou, como se fosse possível negar-se a transparência de sua mágoa. Era um jogo de estica-puxa inútil. Eles não sairiam daquele impasse. Porque um dos lados não se sentia incomodado. Não era o dela.
A sociedade encarrega-se de assoberbar de formalidades, os encontros inúteis e ela ouvia, sem escutar, um sem-fim de falatórios. Então, ela sentiu que ele passaria pela sua frente. Ela, que ele dizia de olhos felinos que brilhavam no escuro. Ela, que sem pensar, esticou a perna. Sentiu quase o farfalhar do tecido da calça dele no seu pequeno pé estirado. Então, num relance de dignidade, recolheu o pé impulsivo, de maneira faceira. Envergonhada por dentro. Trocaram olhares. Aquele olhar cúmplice da consciência da mágoa nela. Ele sorriu como malandro que se safava da rasteira. Respiraram em ritmo diferente. Se dissociaram sem remédio.
Ela sentiu que o sangue lhe circulava indiscriminadamente no coração, no cérebro e no ventre. Sentiu o estômago revirar. O ar faltar. Descobriu que não nasceu pro acaso dos casos. Deixa estar. Hoje, ainda em ressaca moral, pelo ressentimento vívido e nunca jamais sentido antes, comprou três vidros de esmalte. Vai pintar as unhas de vermelho e esquecer a ferida aberta. Ou não. Mas as unhas, estas sim, estarão prontas. Da cor do sangue, para arranhar a pele morena que lhe falta em vida, mas lhe perturba o sono, noite e dia.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

A dor de todo mundo

Nunca achamos que o mal nos atingirá. Tudo de ruim só acontece com nosso vizinho, naquele nosso conhecido, no moço da esquina. Assistimos a novela da vida alheia de camarote no conforto do nosso lar: Filhos matando pais, pais matando filhos, pessoas mortas pela estrada, corpos jogados no esgoto, bandidos que levam a dignidade das pessoas, nos roubam carros, dinheiro e nos sobra a vergonha e uma tremenda impotência, No conforto de nossa paz, somos apenas compadescentes, empáticos e na maioria das vezes indiferentes, não por maldade, mas é que a violência está tão banalizada que se tornou corriqueira.

Quando o mal urbano nos acomete sentimos a dor do mundo e de todo mundo, a ira que nos consome é como um veneno letal que não nos mata assim de morte morrida e nem de morte matada. Com o coração batendo, olhos piscando e cabeça funcionando, sentimos o veneno percorrer lentamente pelo nosso corpo. Um veneno paralisante, inquietante que amputa sem anestesia.

Clamamos então por justiça, a mesma que condenou o casal Nardoni e a Richthofen e a tantos outros monstros que a sociedade cria, acolhe e depois os expõe, numa talvez expiação pelos seus pecados, e  porque não, pecados do mundo. Recebemos na justiça o alento e a sensação de vingança, prêmio por tanto sofrimento causado.Mas pena nenhuma - justa ou não - diminui a dor, muito menos traz a paz, os sorrisos, as companhias, a nossa dignidade, nossa segurança, nosso prazer de ir e vir.

Na boca, o gosto amargo perdura; na alma, uma ferida eternamente exposta. Enquanto isso, de tempos em tempos nos enchem os olhos com mais um ato de uma peça sem final feliz e nós, compramos a história como se ela fosse nossa, até que outra a substitua. Mudam-se os atores, o roteiro, mas o enredo é o mesmo. Quanto mais dor melhor, quanto mais sangue, mais ibope porque o espetáculo não pode parar.