segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Sobre pássaros e meninas



A menina fitava o mundo com admiração, com a disposição clara de quem o desbravava. Caminhava pelas ruas fotografando as flores que encontrava pelo caminho e se sentia privilegiada por ter o dom da visão e ainda se surpreender com ele. Adorava os animais, dizia-lhes “bom dia!” sempre que cruzava com um (fosse um cachorro, um gato ou um percevejo) e os considerava mais uma mostra do dedo daquela força maior que certa feita criara o mundo. Alguns chamavam-na “Deus”, mas ela sempre se referia ao Universo (assim mesmo, com “U” maiúsculo), por considerar este o nome que abarcava o maior leque de possibilidades criadoras.
Mas a menina, como todos nós, aliás, não era perfeita. Com o passar dos anos, desenvolvera uma verdadeira ojeriza a pássaros. De qualquer tipo. De qualquer cor. De qualquer tamanho. Ela não conseguia mais amar os pássaros como amava todo o resto. Tudo porque, um dia, um pássaro branco, de aparência inofensiva, muito belo e sedutor, a ferira gravemente. Foi a menina doar o seu amor ao pássaro, como lhe era habitual e corriqueiro. Ele fitou-a com um olhar acolhedor. E, quando ela estendeu a mão para afagar-lhe as penas, o pássaro branco bateu as asas. Assustado, em pânico, querendo sair de cena. E, como forma legítima de se defender, bicou-lhe violentamente o peito e bateu as asas rumo ao nada.
A bicada logo sangrou, por ter-lhe sido profunda. E causou-lhe uma dor constante, pungente, por muito tempo. Demorou mais do que o normal para que cicatrizasse por completo.
Ela nunca mais fitou pássaro que fosse sem recordar do ferimento que lhe fora feito. A dor passou, o sangue estancou, mas a cicatriz ali ficou. Visível, latente e qualquer um que espiasse um pouco além do seu colo.
A menina sabia que não era bom temer os pássaros. E que, cedo ou tarde, o Universo (aquele, a tal da força maior que podia criar tudo no mundo) lhe cobraria a coragem da superação.
Certa feita, ela andava pela mesma rua cheia de flores e animais de todos os dias, quando tropeçou em algo que a princípio não identificara. Levou uma queda brusca e ralou braços e pernas. Quando finalmente recobrou o equilíbrio e se levantou, viu que tropeçara num pássaro. Branco. Seu velho algoz. Aquele, que lhe fizera sangrar o peito.
Gritou de horror.
Em seguida, entendeu porque ele jazia no meio do seu caminho: estava seriamente ferido. Sangrava por um corte no peito. Parecia sentir muita dor e tinha perdido suas frondosas penas das asas. E, pelo estado de seu machucado, já estava ali há horas, sem que fosse socorrido por viv’alma. Se não fosse devidamente cuidado, e logo, nunca mais voaria, na melhor das hipóteses.
A primeira reação da menina foi deixa-lo ali, à própria sorte, para que morresse à míngua. Mas não. Ela nunca seria capaz. Superou o medo, o asco, o trauma. “Ferido assim, ele não tem condições de me bicar de jeito algum” – pensou. Foi tomada por um sentimento inesperado e desejou que o vistoso pássaro branco voltasse a ser belo como quando o conhecera. Só queria cuidar dele. Cuidar, cuidar e cuidar. Do jeito que fosse possível. Não: do melhor jeito que lhe fosse possível.
Tirou o xale que lhe cobria as costas (fazia frio naquele dia) e enrolou o debilitado animal para que não entrasse em choque. O pássaro branco não sabia falar porque era pássaro. Mas, por dentro, apesar da dor e do frio, sentia-se agraciado. E não se achava digno de tamanha dádiva vinda daquela que ele feriu um dia.
Ela o levou para sua casa. Estendeu o xale sobre a mesa da cozinha e passou horas limpando suas feridas e arrancando-lhe as penas danificadas, para que outras novas e vistosas nascessem ali. Alimentou-o, deu-lhe de beber, acomodou-o em seu melhor cômodo da casa. Foi tomada pelo desejo quase obsessivo de vê-lo curado, bonito, forte e pronto para voar novamente. O pássaro, sentindo-se acolhido, pegou no sono. E a menina permaneceu ali, velando sua noite até o dia amanhecer.
Seguiu este ritual por dias: acordava, dava-lhe de comer, trocava-lhe os curativos, ministrava-lhe os medicamentos. Fazia-lhe carinho. Saía. Voltava. Repetia todos os procedimentos da manhã. E ficava com o pássaro branco até que ele pegasse no sono.
Quando se deu por conta, havia perdido o pânico de pássaros. E tudo que mais queria, quando saía, era saber que ele estava lá, esperando-lhe em casa, pronto para lhe receber.
Demorou, mas o pássaro branco recuperou a saúde, o viço e a vontade de voar.
Um dia, enquanto a garota dormia, foi a vez dele velar seu sono: pousou sobre a cabeceira da cama da menina, e ficou observando-a até que ela acordasse na manhã seguinte. Quando ela acordou, viu-lhe ali: bonito, curado, e pronto pra voar alto novamente, depois de tanto tempo:
- Vá, passarinho, cruze minha janela e voe pra vida.
Ele não foi.
Um raio iluminado de múltiplas cores adentrou a janela do quarto. Ambos sentiram-se cegos por alguns instantes e, quando a claridade voltou ao normal, o improvável acontecera: a menina, agora, também era pássaro.
Entreolharam-se e sentiram que era chegado o momento de alçar o maior voo de ambos até ali. Bateram asas até ganharem a mesma altura e cruzaram a janela rumo ao destino que só eles sabiam que forma teria. Só era o amor.