terça-feira, 21 de junho de 2011

Outubro vazio

Abri os olhos sem pressa de acordar. A lembrança que serviu de ponto de partida para o domingo foi o bolo que levei de Bia na noite anterior. Fechei os olhos, tentei dormir. Não deu certo. Passava das onze horas, dormira o suficiente. A luz que penetrava pelos minúsculos orifícios da persiana era débil, quase ausente, acompanhada do ruído da chuva, que eu não estava certo se era ouvido ou suspeitado.

Depois de alguns minutos de luta contra a realidade, decidi levantar e preparar o café. Enquanto esperava o gorgolejo da máquina, peguei o jornal na porta e fui escovar os dentes. O que vi foi um sujeito que pelos cabelos e expressão fisionômica lembrava um dos irmãos Marx. A lembrança surtiu um efeito melancólico ao invés de cômico. A máquina avisa que o café está pronto, o cheiro estava bom, mas a boca estava amarga.

Minutos antes, quando estava para acordar, antes mesmo de abrir os olhos, uma imagem tentara abrir caminho entre as remanescentes do sonho, mas foi contida pela atenção dispensada à luminosidade cinzenta do dia e ao ruído da chuva. Enquanto escovava os dentes, voltou a se insinuar, mas foi cortada pela visão melancólica de Harpo Marx. Agora irrompia com toda a força, ocupando o espaço da vigília. Bia Vasconcelos sentada ao meu lado para o café da manhã, andando pela sala, pegando um livro ao acaso, escolhendo uma música. A visão durou apenas alguns segundos.

Tentei invocar novamente a imagem de Bia, em vão. Talvez o problema fosse aquela sala. A diferença em relação ao seu apartamento era impressionante. A sofisticação clean da designer e o amontoado barroco
do médico comprador de livros. Levantei-me da mesa e fui novamente me olhar no espelho. Voltei à sala. A mesa colonial, o sofá e as poltronas de almofadas soltas, herdados dos meus pais e ainda com a forração original, os quadros e os chamados objetos de decoração, isso somado à imagem no espelho, ficou a sensação de que Bia e eu habitávamos universos paralelos.

A sala do meu apartamento tem uma pequena sacada com apenas dois palmos de largura e dois metros de comprimento. A vantagem desse detalhe arquitetônico é que, ao invés de janela, a sala tem portas de vidro e de venezianas dando para fora. Abri as duas bandas, mesmo correndo o risco de deixar a chuva molhar o tapete, para ver se, com mais ar circulando, meu estado de espírito melhorava. O que houve foi um encontro entre a exterioridade do dia e minha interioridade, ambas cinzentas.

Peguei mais uma xícara de café na cozinha. Fazia tempo que deixara de fumar, e aquele era o momento em que a falta era mais aguda. Há pessoas que, apesar de abandonarem o vício, mantêm um sempre à mão. Não era o meu caso.

Depois de abrir a porta da varanda, eu retornara à mesa para continuar a leitura do jornal, entrecortada pelas divagações e consulta ao espelho. O cinzento do céu misturava-se ao do prédio do outro lado da praça. A chuva ficou mais forte e um vento sudoeste começou a empurrá-la para dentro da sala. Levantei-me mais uma vez e fechei as portas de vidro, deixando as venezianas abertas. Vaguei pelo apartamento. Uma quarta xícara de café estava fora de questão.

A chuva diminuíra um pouco, permitindo que eu abrisse a porta de vidro da sacada. Uma consulta à geladeira revelou que restavam dois congelados: talharim à bolonhesa e talharim à bolonhesa. Escolhi o primeiro e guardei o segundo para o jantar. O domingo prometia ser eletrizante, como todos os domingos. Após comer o primeiro talharim à bolonhesa sem mesmo me dar ao trabalho de tirá-lo da embalagem, dediquei as três horas seguintes à leitura de Vida e aventuras de Nicholas Nickleby, que comprara no sebo. Pouco depois das cinco horas da tarde, o telefone toca pela primeira vez. Era Bia. Desculpando-se por não aparecer ao nosso encontro. Disse que seu ex namorado havia procurado ela para uma conversa, não havia dado tempo de desmarcar comigo. Deixamos um próximo encontro em aberto, mas eu não estava empolgado como estivera ontem. Ser trocado é ruim, pelo ex, é ainda pior. Desligamos o telefone.

Não gostava de outubro e não gostava de domingo. Outubro estava começando num domingo. Pior do que isso só se a segunda-feira caísse num domingo. A chuva recomeçara, e o melhor a fazer era esperar a hora do segundo talharim à bolonhesa.