domingo, 25 de setembro de 2011

Castanhos e verdes. Olhos.

Sentou-se na areia. Não se importou de sujar o longo vestido branco. Na verdade, pela primeira vez, não importou-se com a areia. Escutou o mar indo e vindo e o rumor como que estalou dentro de si mesma. A brisa bagunçava seu cabelo. Também não importava. Era um dia diferente e nada pequeno importava. Havia um sentimento de completude e abandono naquilo tudo. Uma amarga felicidade de quem chegou a algum lugar e parece nem ter mais aonde ir.
Fechou os olhos para sentir o cheiro liberto de sal que emanava. Cerrar visão sempre resultava em algo mais profundo na moça. Ela sentiu como um borbulhar de champagne por dentro e por pouco achou que entraria em ebulição. Respirou. Profunda e vagarosamente. Buscou abrigo nas reminiscências.
Daquele lugar, duas imagens lhe sequestravam. Sentiu-se fragmentada no rapto, mas deixou-se levar.
Viu, então, mais uma vez, aquele dia de inverno impune. Com o mar a ensurdecer as vozes. Com o vento a roubar palavras. Sentiu o cheiro almiscarado na pele próxima. Sentiu aquela sensação angustiante de não tocar, ao tocar o intocável, mesmo quando se tocaram pela primeira vez. Eles eram corpos absurdamente reconhecidos em almas distantes e rebeldes. Não se lembrava muito de tudo que veio antes ou que viria depois. Lembrava-se apenas daquele pequeno instante em que sentiu seu olhar sobre ela. Um pouco de nudez lhe vestiu a pele apenas com aquele movimento ínfimo das suas pálpebras. Talvez as mãos dele lhe houvessem tocado. Talvez tenha sentido a barba a lhe roçar o rosto. Talvez. O que ficou, foi o pousar daqueles olhos. Aqueles olhos verdes. Pela primeira vez, naquele instante, acreditou que os estudiosos de cor haviam se enganado. Verde era cor quente. Verde que derretia em ondas de lava ao olhá-la. Sentia aquele calor todo lhe inundar a alma, ainda que lhe esfriasse, o vento pelo corpo. E então, como em todas as vezes que se lembrava - quiçá tinha sido assim de fato -, sentiu um redemoinho do vento a lhe envolver as entranhas todas e olhou, mais uma vez, talvez a derradeira vez, para aqueles olhos de suas lembranças. Verde era cor fria e dele saíam pequenas lágrimas cortantes de gelo.
Raptada, como sempre, por outra memória, viu-se no mesmo lugar. A noite chegava. O sol ia embora fazendo estardalhaço em laranjas, vermelhos e roxos, impunes e contentes. Não havia música, mas ela escutava uma que lhe vinha da alma. De ambas almas. Desta vez, sentiu as mãos a lhe envolver o corpo todo. Sentiu que ele lhe sugava o perfume ávido. Ouviu as palavras todas afoitas e de calão adorável. Entregou-lhe a alma e o corpo naquele momento, sem nem saber no que ia dar. Tocáveis. Deixou que ele fosse o dono do seu corpo. Do seu sorriso satisfeito. Olhou dentro daqueles olhos de mel adocicado e sentiu-se envolvida. Aqueles castanhos seguros de si, pacientes e insistentes. Sabia que ia deixar-se ali, sem resguardo. Eram de fato, quentes, nem a ciência lhe negaria isto. O corpo todo dele corroborava o calor. Percebeu aqueles olhos de menino lhe descobrindo sorridente. Sentiu o cabelo dele entre suas mãos e sorriu. Estreitou aquele rosto conhecido e deixou-se penetrar pelos seus próprios castanhos por aqueles castanhos. Mãos e braços e pernas que queriam mantê-lo próximo, justaposto, dentro. Era primavera, mas ela não viu as flores. Era flor.
Voltou à realidade como se um fio de prata lhe puxasse de volta àquela tarde de outono. Voltou ao vestido maculado pela areia. Era o beijo na nuca que lhe trazia de volta. Sentiu o beijo lhe descer um pouco mais pelas escápulas nuas. Ouviu murmúrios inaudíveis de um sotaque conhecido. A mão direita dele lhe afastava os cabelos pra deixar a pele livre de obstáculos. Como na música, sentiu o paletó enlaçar o vestido. Então viu a mão esquerda que vinha de suas costas, pousar em seu seio esquerdo. A mão de dedos longos que ela já conhecia, desde sempre. A mão que nem se importava mais com o vestido. E sem olhar para os olhos, soube de que cor eles eram.

7 comentários:

Amandette disse...

A dubiedade do denso e do delicado, sempre muito bela quando bem transposta.

Marilze disse...

Perdi-me nas tuas palavras, como se vivesse um sonho, ou talvez o personagem...vc escreve la dentro da alma. Lindo!

LandNick disse...

Cris!Uau!!!É um texto para se ler e reler muitas vezes! Um texto que transita entre o real e o surreal! Onírico e erótico com sutileza e sensibilidade! Um texto com descobertas surpreendentes:"Verde era cor quente!". Um texto de uma pessoa que não cabe mais em si, e transborda poesia nos leitores à sua volta! Excelente!

Hugo disse...

Texto delicioso de ler. Leve e intenso ao mesmo tempo.

Muito bom mesmo!

Toni disse...

Adorei a mistura de tons, tanto do texto quanto dos olhos. É a tradução de algo profundo e ao mesmo tempo delicado.
Fui lendo e ouvindo ao longe uma trilha sonora que começava com a frase "Ando tão a flor da pele ..."
Lindo.

Nacho disse...

Falei uma vez, Cris, que teus textos poderiam muito bem ser escritos por mim. Não pela perfeição com que são preparados (seria pretensão demais da minha parte), mas pelas características das personagens, esse jeito descomunal de ver e sentir o mundo, as coisas em volta. " Cerrar visão sempre resultava em algo mais profundo na moça", "Não havia música, mas ela escutava uma que lhe vinha da alma". Fechar os olhos e ouvir a música da alma: se existe jeito mais gostoso de degustar os momentos, eu desconheço; degustar, sim, que todo momento tem gosto, cor e som. E é uma delícia como tu faz questão de lembrar isso nessa descrição gostosa! E, como se o texto não estivesse suficientemente encantador, tu ainda cita a música do mestre, música essa que eu tenho ouvido todo santo dia. Delícia de texto, Cris! Eu pude sentir a brisa aqui... e queria, de verdade, essa dubiedade de sentimentos. Queria essa felicidade amarga, queria ouvir a alma do outro cantando no mesmo ritmo da minha, queria ver o verde se transformar numa cor quente. Na verdade, só queria um olhar quente, tivesse ele a cor que tivesse, que o olhar esquentaria. Eu não me importaria com a areia, nem com os cabelos bagunçados. E eu não precisaria olhar nos olhos pra saber qual cor tinham.

Dalva Santana disse...

Como diz seu amigo LandNick perfeitamente: " Um texto de uma pessoa que não cabe mais em si"... é assim que eu a vejo. Parabéns mais uma vez...Beijos