quinta-feira, 14 de julho de 2011

O ecrã amargo


Acordou atordoada, com a sensação de não saber onde estava. A primeira coisa que sentiu foi vontade de fumar. Uma vontade uterina, quase. Tentou ignorar o apelo da fase oral. Lembrou-se porque estava aborrecida. Lembrou-se, exatamente, de onde vinha o motivo perturbador que lhe fazia ter picos extremos de sono e insônia. Que horas eram? A luz indicava uma semi-aurora ou um por-do-sol. Que horas havia deitado? Ignorou também esta curiosidade. De fato, sentiu desejo de ignorar tudo.
Pegou o celular que repousava ao lado da cama e abriu o jogo preferido. Absurdamente, nonsense. As bolinhas coloridas a explodir como bolhas de sabão lhe afastavam pensamentos. Bons ou ruins. A pontuação foi extraordinária, o que lhe trouxe o pensamento sarcástico: "sorte no jogo, azar no amor". Decidiu jogar mais uma vez. Certamente, não melhoraria o ardor nos olhos. Muito menos a dormência nas mãos. Jogou mais uma vez. Pontuação baixíssima. Teve vontade de rir. Aquele riso de desespero ignóbil e controlou-se. Ironicamente, uma lágrima lhe caiu dos olhos. Enxugou-a, diligentemente e notou que havia chorado em sonhos. Quis xingar. Não conseguiu. Estava sozinha e ela tinha perdido o hábito de xingar o Universo. Na verdade, tinha perdido o hábito de explodir em impropérios. Ele lhe ensinara isto. Isto, de tudo aquilo. Tantas coisas, dentre muitas.
Ela sabia o que era aquilo tudo. A ansiedade a lhe comer o fígado, a lhe perturbar as idéias, a lhe transtornar o apetite, as vontades, o sono, a clareza. A enxaqueca, em breve, bateria-lhe às portas, inquilina fiel e constante, nos últimos tempos. Olhou a cachorra, dormindo placidamente, sempre ao seu lado. Isto é lealdade, de resto nem pela dela apostaria as mãos no fogo. Espreguiçou-se e conteve-se no estiramento. Ia pinçar a coluna pelos estalos crocantes de seu esqueleto em frangalhos pelas noites mal dormidas, pela palpitação cardíaca.
Os lábios estavam ressequidos. Estava desidratada, provavelmente. Levantou-se em busca da velha coca-cola. No caminho, encontrou-o. O ecrã. Odiava aquela palavra, em suas vísceras. Encontrara o portátil, mas agora só via o ecrã. Passara a nutrir ódio por ele. Na tarde passada? Na semana passada? Não sabia. Bebeu o refrigerante, desafiando com o olhar, o eletrônico. Desligado. O estômago reclamou. Não iria comer. Sabia o que resultaria.
Pegou o maço de cigarros e sentou-se de frente para o inimigo. Acendeu o mais placidamente que podia. Sentiu que as pernas começavam a balançar, na aflição interna. Respirou. Ligou o aparelho. Observou calmamente a tela brilhante a lhe desafiar. Cruzou as pernas. Elas dormiram. Bravo! Não havia alternativa.
Então, a torrente veio e com ela a coragem. Escreveu, soluçando, o que talvez não devesse. Escreveu para si. Para limpar a alma. Quis olhar e-mails, redes sociais, mas seria inútil. Quis atravessar o maldito ecrã ao final e se transportar para onde deveria estar. Quis gritar que aquilo não fazia sentido. Mas não gritava mais. Tinha se educado, por ele, a conter o tom que o assustava, sem necessidade. Era o tom do sangue que lhe queimava, apenas, mas o que não se faz por alguém que se quer bem?
Finalmente, veio a segunda fase, temida, que ela afugentava como um mau agouro. Milhares delas pelo rosto. Quis ser outra pessoa para abraçar a si mesma. Deixou-se ir até seu limite. Ou além dele. Respirou.
Entrou na ducha, como a mãe lhe havia instruído pela vida: "Toma um banho, que passa". Vestiu-se, perfumou-se, maquiou-se. Dirigiu-se à porta e olhou ao espelho. Tudo isto para ir ao mercado?
Comprou ovos, iogurte, creme de leite e beringelas. Com "j" ou com "g"? Ao pagar, como a caixa lhe questionasse com os olhos, a demora em achar as notas, soltou, despudoradamente: "Não me julgue. Eu supero o ecrã. Não supero o que está além dele. Nem quero superar. Grata." E saiu sorrindo, amarga, mas com aquela certeza, quase vingativa, que tinha dito a verdade. Tão somente a mais pura verdade.

*ecrã: no português de Portugal, significa tela do computador, display, monitor.

7 comentários:

Claudia Feitosa-Santana disse...

muito bom, amiga

Renata Juliana disse...

Bom! Bjo.

Luisa disse...

Sabe q sou sua fã, né? E acho q deveria escrever profissionalmente.
Quanto ao jogo, às vezes ele vira.. por mais incrível que pareça :)
Em tempo: minha angústia agora estava em descobrir que raios era um ecrã..
Bjocas!

Unknown disse...

Tomar banho nos deixa limpos, dizer a verdade nos deixa perfumados!
Parabéns!

Unknown disse...

Amei...muito bom mesmo...é isso que gosto em um texto, ler e se ver nele, quase que se identificar, não digo em tudo mas palavras bem colocadas, que nos fazem pensar em nosso pequeno mundo mundo interior ou diria grande mundo rsrs. Afinal são tantas coisas que que passam pela nossa mente.Ah esse ecrã!.Parabéns.

Rubens Gualdieri disse...

Uma tela de computador: um simulacro de um espelho para refletir o que somos ou o que gostaríamos de ser? Lidar com a superficialidade do lado de fora da tela e com a profundidade do lado de dentro, colocar um pouco de um dentro do outro, é isso que faria o viver ideal? Ou os dois lados nada representam em termos de realidade e tudo o que vivemos é uma Matrix dentro da Matrix, onde sempre que acordamos no meio da noite, temos a fuga de estourar bolinhas e atrabiliar o teclado com nossas frustações? A verdade? Não sei e por isso vivo todos os dias pra descobrir. Parabéns, mais uma vez, Cris. bjks.

Anônimo disse...

Cris, incrível como tu sempre me deixa boquiaberta! Vi, nesse texto, uma descrição quase que perfeita de uma cena que se passou comigo há uns meses. Me passou rapidamente pela cabeça a idéia maluca e incabível de que tu pudesse tê-la presenciado! Repito, a forma como tu escreve me dá uma coisa lá por dentro, uma coisa na alma que não sei muito bem explicar. Sem exageros! Voltei a escrever e tive coragem de publicar por culpa tua. Escrevi aquele texto no mesmo dia em que li o teu. Sim, já podes se referir a mim como tua fã e leitora assídua de teus escritos! Parabéns!