sábado, 30 de abril de 2011

Do ressentimento inédito


Ela não queria sair. Por que sair se encontraria os olhos negros emoldurados em mau-gosto? Não obstante, forçou-se.
Como nada na vida pode ser morno, sua noite já começou estraçalhando suas reservas de uma só vez. Começou sendo impelida a cumprimentar a moldura que não lhe agradava. Sentiu um gosto irreconhecido nas entranhas. Gosto de ressentimento. Podia dizer da outra, que devia tirar de si mesma aquele rabo de cavalo eterno e mal-feito. Podia concluir, que ao fim, o rabo lhe caía bem com sua cara de cavalo pouco delicada. Ou que seu sotaque lhe conferia certo charme burguês. Decididamente, podia afirmar que as barras da calça deveriam ser feitas: aquele amontoado de tecido grosso no fim daquela pernas - não longas o bastante - eram deselegantes. Trocaram olhares e sentiu nas entranhas, aquilo que nunca se sabe de fato, mas se intui. Ela sabia. A outra também. Então, a moldura retirou-se de maneira quase imperceptível do cenário e deixou nossa mocinha angustiada, mas respirando.
Sentou-se com uma long neck, que bebia a grandes goles como se uma sede imoral lhe queimasse a alma. Pensava, distante, que finalmente sentia aquele tal de ressentimento lhe amargando a boca. Quantas vezes não deve ter sido o objeto deste mau agouro de outras mulheres? Ela mesma, não se lembrava de haver sentido. Não competia, ela. Vencia. Quase sempre. Passado. Sentiu um frêmito que lhe interrompeu as ideias. Eram seus olhos negros que buscavam com lábios sociais cumprimentar sua bochecha. Foi questionada, sorridentemente, qual motivo de seu olhar de soslaio. Cinicamente negou, como se fosse possível negar-se a transparência de sua mágoa. Era um jogo de estica-puxa inútil. Eles não sairiam daquele impasse. Porque um dos lados não se sentia incomodado. Não era o dela.
A sociedade encarrega-se de assoberbar de formalidades, os encontros inúteis e ela ouvia, sem escutar, um sem-fim de falatórios. Então, ela sentiu que ele passaria pela sua frente. Ela, que ele dizia de olhos felinos que brilhavam no escuro. Ela, que sem pensar, esticou a perna. Sentiu quase o farfalhar do tecido da calça dele no seu pequeno pé estirado. Então, num relance de dignidade, recolheu o pé impulsivo, de maneira faceira. Envergonhada por dentro. Trocaram olhares. Aquele olhar cúmplice da consciência da mágoa nela. Ele sorriu como malandro que se safava da rasteira. Respiraram em ritmo diferente. Se dissociaram sem remédio.
Ela sentiu que o sangue lhe circulava indiscriminadamente no coração, no cérebro e no ventre. Sentiu o estômago revirar. O ar faltar. Descobriu que não nasceu pro acaso dos casos. Deixa estar. Hoje, ainda em ressaca moral, pelo ressentimento vívido e nunca jamais sentido antes, comprou três vidros de esmalte. Vai pintar as unhas de vermelho e esquecer a ferida aberta. Ou não. Mas as unhas, estas sim, estarão prontas. Da cor do sangue, para arranhar a pele morena que lhe falta em vida, mas lhe perturba o sono, noite e dia.

9 comentários:

Claudia disse...

Curti, Amiga, como Sempre... Já tô postando uma parte que é a minha cara...! Beijos!

Hugo disse...

Sabe Cris, a vida é composta desses episódios, serve pra gente aprender com os erros, mas mais que isso. Nos mostra que mesmo alí quebrando a cra, se expondo, a gente não está imune à sentimento.

Imagina que triste deve ser a pessoa que não sene nada?


Beijo

lily disse...

cris,verdadeira com sempre.sou sua fã incondicional!

LandNick disse...

Ainda não sei se a Cris é uma Arquiteta que também é uma excelente escritora, ou uma excelente escritora que também é Arquiteta! Na dúvida fico com ambas! Tenho certeza que sairei ganhando! Parabéns!

Roberta Paula disse...

Amei, morro de orgulho da minha madrinha.

Stella Soares disse...

Intenso. Sempre. Um pedacinho de alma traduzida. Bárbaro, Cris..

Renata disse...

Muito legal texto. Parabéns!

venusaestreladamanha disse...

Li,como prometi,com carinho... fiquei sem fôlego... Forte, intenso(repetindo sua amiga Stella). Já li três vezes e vou partir para a quarta... Parabéns!

Ines Ogata disse...

Sim, Cris.. a vida é isso, não é mesmo ? encontros, desencontros,a cada dia uma batalha de emoções , e ainda de tudo isso encontrar forças para sobreviver , com unhas vermelhas ou não ...
Bjs amiga !!