quinta-feira, 8 de março de 2012

A morte de Hugo Guimarães Drodowski

Essa história pode parecer longa, mas é sobretudo surreal. Vale a leitura para que você, que me lê e existe, não caia no golpe desse ou de qualquer outro indivíduo.

Conheci Hugo Guimarães Drodowski, o @huguimaraes, pelo Twitter. Ele veio por uma seguidora antiga, arroba que não existe mais. Seu perfil: médico, formado em Coimbra, 34 anos (hoje), mineiro que mora no Rio de Janeiro. Quando o conheci, no comecinho de 2011, ele tinha uma namorada que gostava de discrição e ai, convenientemente, ela não assumia o namoro publicamente. A tal namorada, uma blogueira conhecida de São Paulo, é amiga, de fato, de amigos.

Hugo é de uma inteligência envolvente, amigo, companheiro, muito sincero e sofrido. Insuportavelmente sofrido. A então namorada o maltratava com requintes de crueldade, abandono e falta de sentimentos. Ele é muito doente, tem imunidade baixa. E muito família.

Órfão do José Roberto, um ortopedista que também foi político em Mato Grosso. A mãe dele é a Dona Lúcia, cardiologista lá em BH, que não clinica, só dá aulas. Faz aniversário no mesmo dia que eu!!!

Vamos às irmãs. Roberta, a mais velha, ficou viúva do Gustavo faz pouco tempo. O Hugo sofreu demais, segurei a onda dele. Ela é dentista, em BH. Tem 3 filhos e a Taís, a mais velha, teve a Lori super jovem, no ano passado. Fabiana é ortopedista e separada. Ela trabalha no hospital Sarah Kubistchek. Tem dois filhos. Hugo e ela não se dão bem. Ela pede muito dinheiro emprestado. A Rosana é casada, ortopedista que não exercia a profissão e tem um filhinho. Com a Rosana eu falei no telefone. Uma querida. Todas elas, estão no Facebook e no Twitter. Com fotos, comentários, histórias.

As mulheres de Hugo são muitas. Ele tem a ex, Michele. Michele é de Belém, psicóloga, foi pra Portugal atrás dele. Ela já tinha um filho, o Henrique. Hugo quer adotá-lo oficialmente. Aí eles tiveram o Davi que tem quase 3 anos, agora.

Depois da Michele, ele contou que teve uma Carolina e uma Renata. Após, foi amante de outra Renata, casada e chefe dele. Aí encontrou a tal blogueira. Ele a amou muito, mas se desencantou porque ela era grossa. Foram meses dolorosos que eu acompanhei, como amiga. Na picuinha de se vingar da moça, ele acabou se envolvendo com uma amiga dela, outra blogueira. Segundo ele, sempre sentiu muito desejo por essa. A história é de que foram só uns beijos, mas uma pirou e brigou feio com a outra. Aí veio JT. Não sei quem é, mas andou me peitando pela timeline do Twitter e dizendo que foi viajar com Hugo para Angra. Ela queria demarcar território, sem o conhecer, ou qualquer outra alternativa.

Aí veio a viagem pra Europa e Hugo foi parar em Paris. Lá, conheceu Marcelle. De dezenove aninhos que se apaixonou loucamente por ele e engravidou do Filipe, que nasceu agora em fevereiro.

Olha, vocês tenham paciência que a história nem começou e esse inicio é meio fraco e detalhado.

Aí eu entro, não como amiga, mas como mulher. Estava sendo vítima de um troll português, mas Super Hugo me salvou! Desmascarou o cara, descobriu suas mentiras, uniu-se a mim de jeito inequívoco.

Pra completar, Hugo foi atropelado na orla carioca. Ficou acamado. Pediu afeto, atenção e carinho. Eu dei. Nessa época, ele queria tentar uma aventura comigo. Sexo entre amigos. Eu relutei infernalmente, os mais próximos sabem. Aí, um dia, ele realmente se disse envolvido. Rosana, a irmã, me disse que era óbvio que nós íamos acabar namorando, que a gente se gostava. Eu estava sozinha e quem não está fazendo nada, começa, então, a fazer nada acompanhada. Grande erro. Ele passou a me tratar de "namorada linda". Mandava emails adoráveis, recheados de “eu te amo” e planos de viagem, de shows, pedidos de comida. Enfim. Ligava 4, 5 vezes por dia. Me ocupava horas. Dividia tudo. A voz do Hugo é a de um menino. Não muito desejável, mas adorável no papel que ele criou. O papel de menino carente, dependente, mas muito, muito protetor.

Hugo nunca podia falar na webcam. Sempre desmarcava seus compromissos de maneira trágica. Suas viagens para SP acabaram por nunca acontecer. Por fim, em sua última desculpa para não vir até SP como o combinado, Hugo matou a mãe de Mariana. Quem é Mariana? No meio do meu affair virtual, ele descobriu que tinha engravidado uma ex, a Dani, aos 16 anos. O fruto disso era Mariana, estudante de medicina que hoje mora com ele. Mora porque no começo de novembro, seu pai adotivo, Celso, sua mãe e seu meio irmão, Hugo (!!!) faleceram num acidente trágico de automóvel.

Eu nem estou contando todos os fatos e desculpas que ele me contou. Muitas vezes chorando. Muitas vezes, cabisbaixo, beirando a depressão. Tantas doenças, mortes, acidentes, tristezas, perdas. O bom disso é que Hugo é muito rico, então, cura tudo isso com viagens freqüentes pra tudo quanto é lugar.

Então, fiquei doente, fui internada e tive uma recuperação longa e sofrida. Foi o momento perfeito pra que Hugo exercesse toda sua proteção. Ligava-me de 3 em 3 horas, no máximo. Queria saber os medicamentos que estava tomando. Dava instruções explícitas para que eu passasse às enfermeiras. Reclamava que achava que os médicos me visitavam pouco. Aproximou-se mais ainda de mim e obviamente, de minha mãe que permanecia comigo no hospital, como acompanhante.

Já ambos recuperados, eu da minha internação e ele doS acidenteS que se seguiram, Hugo propôs a criação de Sustenidos Resistentes. Um blog coletivo. Chamou gente. Envolveu pessoas. Entusiasmou o grupo. Das pessoas que lá escrevem, incluindo eu mesma, conheço algumas, ao vivo e em cores.

No começo do ano, após desistir de passar o réveillon no Rio com ele, eu estava exausta de tudo. Eram quatro meses de pura enrolação. Ele paralisava minha vida. Me sugava demais e parecia estranho. Comecei a brigar direto com ele. Pressionar. Por fim, ele contou que tinha acontecido algo. Uma garota do nosso círculo virtual o tinha encantado e eles estavam namorando. A suposta namorada, que chamarei de primeira dama, como ele a chamava, é amiga de uma amiga. Vive no Rio. Talvez tenha sido o erro dele. Envolver mulheres conhecidas. De tanto implorar, chorar, ligar e insistir, acabei cedendo a continuar amiga. Eu não sou menina, já levei um monte de pé na bunda. Esse, de um cara que eu não conheço, não ia me matar. Isso posto, a coisa piorou. Hugo resolveu me fazer de confidente dessa relação. Por mais que eu implorasse, desligasse o telefone na cara, me afastasse, ele continuava ligando, insistindo, procurando. “Porque me amava como amiga”. Era nítido o prazer mórbido e cruel de me fazer ciúme e me irritar com a rejeição sucedida. As pessoas que convivem muito comigo, como Amanda e Rebeca, viam as ligações dele para mim o tempo todo. Obviamente, eu e a primeira dama, nutríamos uma raiva e um ciúme uma pela outra bastante natural e alimentado por ele, dia e noite.

Então, Amanda foi viajar pra Buenos Aires. E o Dr. Hugo, também!!! Não, eles não se encontraram. Como sempre, algum imprevisto estranho, algum desencontro ou alguma tragédia aconteceram e Hugo não foi encontrado. É a vida.

A essa altura, todo mundo estava muito desconfiado. Ninguém tinha idéia do que poderia ser. Era apenas estranho: muita tragédia, muita dificuldade e muita enrolação. Além, de notoriamente ele não sentir remorso nenhum pelo que cometia e o quanto magoava as pessoas.

Então, a primeira-dama me procurou. Por telefone, sem jeito, ambas começamos a dividir a nossa história com esse personagem. Nos primeiros cinco minutos, eu já teria motivo de quebrar os dentes dessa criatura. Ele não namorava a primeira dama. Ela nunca o tinha visto. Todos os detalhes desse suposto relacionamento, com pais, irmã, sexo, saídas que ele me contava, eram apenas sordidez em palavras. Sordidez e mentira. As histórias eram as mesmas. Acidentes, febres, doenças, furos memoráveis. Chegou a fazê-la esperar por 3 horas em frente ao seu condomínio e não apareceu. Embora diga que apareceu e que tenha sido um desencontro. Então a primeira dama me contou que tinha dado busca no CRM e não havia encontrado nada.

Começa ai de fato, a caçada da verdade. Busquei tudo que pude pela internet, pelo Google e descobri milhares de furos. Vou relatar tudo. Procurei João Márcio, meu amigo e pedi que ele checasse o envolvimento de Hugo com as tais blogueiras, amigas dele. Negativo. Nenhuma das duas o conheciam. Reuni um grupo de amigos. Eles saíram em busca de outros contatos. Por fim, envolvi a polícia e um advogado. O resultado dessa busca resultou no que se segue.

Em primeiro lugar, através da internet, sem o envolvimento de investigação profissional:

1. Hugo Guimarães Drodowski não possui nenhum registro no Google, exceto os blogs, twitter e facebook que criou. Seu nome não consta no CRM. Não estudou na Universidade de Coimbra, que gentilmente forneceu a informação.

2. José Roberto Drodowski não possui nenhum registro no Google. Nem em CRM. Nem em crônicas de política.

3. Lúcia Guimarães Drodowski não possui registros no Google, nem no CRM. Não dá aula em nenhuma Universidade conhecida.

4. Roberta Drodowski não consta no Google, nem no CRO. E se ela não existe, não deve ter filhos, nem netos, nem ser viúva. Possui twitter.

5. Fabiana Drodowski não consta no Google, nem no CRM. Não trabalha no Hospital Sarah Kubistchek. Também supõe-se que não tenha filhos. Possui facebook e twitter.

6. Rosana Drodowski Maeda não consta no Google, nem no CRM. Supõe que não tenha filhos, nem marido. Possui facebook, twitter e blog.

7. As fotos de Hugo, na sua quase totalidade são sozinho. Não há irmãs, filhos, ex mulheres, namoradas. As outras fotos que ele posta, de coisas impessoais, são facilmente encontradas no Google Images. Em outro post, colocarei exemplos, mas é só procurar que costuma estar na primeira página do Google Images. Até mesmo a foto do tornozelo dele quebrado é de um blog com post de 2007.

8. No exato momento, em que termino de escrever, Hugo está apagando perfis. O perfil do Twitter de Mariana, a filha, já foi apagado.

Com a ajuda da investigação profissional:

1. Todo esse texto tem um erro de gênero grave. Hugo Guimarães Drodowski não só não existe como nome, mas é uma mulher. Seu nome é Maria Carolina Machado Martins.

2. O telefone TIM que muitos de vocês já podem ter ligado, está em nome dessa moçoila. Isso não significaria nada, exceto que a busca por seu nome resulta em golpes extremamente iguais, com outros perfis, desde 2006.

3. Há dois blogs de vítimas, dedicados exclusivamente a pegar furos dessa moça e divulgá-los. Obviamente, eles não são de grande valia em uma nova identidade, porque Carolina muda de personagem como quem muda de camiseta.

4. Nos antigos perfis há uma predominância das mesmas características: mineiro que mora no Rio, médico, em torno de 30 anos. Todos tem filho chamado Davi. Nomes recorrentes: Leonardo (nome de antigos perfis e atual melhor amigo), Mariana (foi mulher em outro perfil), Davi (filho), Mariah (comentadora dos blogs e amiga próxima), Roberta (foi irmã), Carolina (foi irmã e namorada).

5. Tem fixação por acidentes e mortes. Ambos trágicos.

6. Envolve mulheres falantes, no geral.

7. Embora, Hugo tenha apagado quase todas as fotos de seu perfil, hoje. Sei que vocês reconhecerão fotos do bebê Filipe em um dos blogs, como sendo filho do Dr Teórico. Enfim, posso ficar aqui, até amanhã, mostrando fotos falsas da caipirinha de cerveja, da cerveja saporo, do bebe, do tornozelo, do café de Amelie Poulain, da praia de Ipanema. É só buscar no Google.

8. Em um dos blogs, uma das vítimas da Srta. Maria Carolina, gravou a voz ao telefone e mandou a peritos. A voz de adolescente é a voz fingida de uma mulher de 26 a 32 anos.

9. Nos blogs também já se conseguiu mostrar que muitos dos textos tão bem escritos são plágios.

Os blogs que citei:

http://a-grande-farsa.blogspot.com/ e http://gotasdiariasdesentimento.blogspot.com/

Caso, algum de vocês duvide de mim, faça a busca por si mesmo. Vai se surpreender. Na verdade, só o fato do “Dotorugo” não ser médico e agir como tal, já seria crime. Como ele não tem CRM, estamos já conversados. As provas, no entanto, são cabais, uma a uma, olhadas com clareza e por gente que entende de assédio moral e falsidade ideológica, são coisas claríssimas.

Tenho endereço completo da moça e sei que ela mora em Teresópolis. Pouco me interessa, porque não quero olhar a cara da moça de jeito nenhum. Se alguém, por caridade, conhecer o rapaz que é utilizado nas fotos, avise-me. Eu tenho uma série de fotos salvas.

Caso, Hugo Guimarães Drodowski exista, apareça!!! Sou obrigada a gargalhar no momento em que escrevo isso.

Maria Carolina, deixe-nos, todos, em paz. Você já usurpou muito meu tempo e o de outras vítimas. Não nos procure. Não crie problemas. A polícia já está avisada da sua existência. Nós também. Você cometeu diversos crimes, mas tudo que eu te desejaria, de coração, é o hospital psiquiátrico.

Feliz dia das mulheres, Maria Carolina. A partir de hoje, experimente ser uma, com o mínimo de dignidade.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Sobre pássaros e meninas



A menina fitava o mundo com admiração, com a disposição clara de quem o desbravava. Caminhava pelas ruas fotografando as flores que encontrava pelo caminho e se sentia privilegiada por ter o dom da visão e ainda se surpreender com ele. Adorava os animais, dizia-lhes “bom dia!” sempre que cruzava com um (fosse um cachorro, um gato ou um percevejo) e os considerava mais uma mostra do dedo daquela força maior que certa feita criara o mundo. Alguns chamavam-na “Deus”, mas ela sempre se referia ao Universo (assim mesmo, com “U” maiúsculo), por considerar este o nome que abarcava o maior leque de possibilidades criadoras.
Mas a menina, como todos nós, aliás, não era perfeita. Com o passar dos anos, desenvolvera uma verdadeira ojeriza a pássaros. De qualquer tipo. De qualquer cor. De qualquer tamanho. Ela não conseguia mais amar os pássaros como amava todo o resto. Tudo porque, um dia, um pássaro branco, de aparência inofensiva, muito belo e sedutor, a ferira gravemente. Foi a menina doar o seu amor ao pássaro, como lhe era habitual e corriqueiro. Ele fitou-a com um olhar acolhedor. E, quando ela estendeu a mão para afagar-lhe as penas, o pássaro branco bateu as asas. Assustado, em pânico, querendo sair de cena. E, como forma legítima de se defender, bicou-lhe violentamente o peito e bateu as asas rumo ao nada.
A bicada logo sangrou, por ter-lhe sido profunda. E causou-lhe uma dor constante, pungente, por muito tempo. Demorou mais do que o normal para que cicatrizasse por completo.
Ela nunca mais fitou pássaro que fosse sem recordar do ferimento que lhe fora feito. A dor passou, o sangue estancou, mas a cicatriz ali ficou. Visível, latente e qualquer um que espiasse um pouco além do seu colo.
A menina sabia que não era bom temer os pássaros. E que, cedo ou tarde, o Universo (aquele, a tal da força maior que podia criar tudo no mundo) lhe cobraria a coragem da superação.
Certa feita, ela andava pela mesma rua cheia de flores e animais de todos os dias, quando tropeçou em algo que a princípio não identificara. Levou uma queda brusca e ralou braços e pernas. Quando finalmente recobrou o equilíbrio e se levantou, viu que tropeçara num pássaro. Branco. Seu velho algoz. Aquele, que lhe fizera sangrar o peito.
Gritou de horror.
Em seguida, entendeu porque ele jazia no meio do seu caminho: estava seriamente ferido. Sangrava por um corte no peito. Parecia sentir muita dor e tinha perdido suas frondosas penas das asas. E, pelo estado de seu machucado, já estava ali há horas, sem que fosse socorrido por viv’alma. Se não fosse devidamente cuidado, e logo, nunca mais voaria, na melhor das hipóteses.
A primeira reação da menina foi deixa-lo ali, à própria sorte, para que morresse à míngua. Mas não. Ela nunca seria capaz. Superou o medo, o asco, o trauma. “Ferido assim, ele não tem condições de me bicar de jeito algum” – pensou. Foi tomada por um sentimento inesperado e desejou que o vistoso pássaro branco voltasse a ser belo como quando o conhecera. Só queria cuidar dele. Cuidar, cuidar e cuidar. Do jeito que fosse possível. Não: do melhor jeito que lhe fosse possível.
Tirou o xale que lhe cobria as costas (fazia frio naquele dia) e enrolou o debilitado animal para que não entrasse em choque. O pássaro branco não sabia falar porque era pássaro. Mas, por dentro, apesar da dor e do frio, sentia-se agraciado. E não se achava digno de tamanha dádiva vinda daquela que ele feriu um dia.
Ela o levou para sua casa. Estendeu o xale sobre a mesa da cozinha e passou horas limpando suas feridas e arrancando-lhe as penas danificadas, para que outras novas e vistosas nascessem ali. Alimentou-o, deu-lhe de beber, acomodou-o em seu melhor cômodo da casa. Foi tomada pelo desejo quase obsessivo de vê-lo curado, bonito, forte e pronto para voar novamente. O pássaro, sentindo-se acolhido, pegou no sono. E a menina permaneceu ali, velando sua noite até o dia amanhecer.
Seguiu este ritual por dias: acordava, dava-lhe de comer, trocava-lhe os curativos, ministrava-lhe os medicamentos. Fazia-lhe carinho. Saía. Voltava. Repetia todos os procedimentos da manhã. E ficava com o pássaro branco até que ele pegasse no sono.
Quando se deu por conta, havia perdido o pânico de pássaros. E tudo que mais queria, quando saía, era saber que ele estava lá, esperando-lhe em casa, pronto para lhe receber.
Demorou, mas o pássaro branco recuperou a saúde, o viço e a vontade de voar.
Um dia, enquanto a garota dormia, foi a vez dele velar seu sono: pousou sobre a cabeceira da cama da menina, e ficou observando-a até que ela acordasse na manhã seguinte. Quando ela acordou, viu-lhe ali: bonito, curado, e pronto pra voar alto novamente, depois de tanto tempo:
- Vá, passarinho, cruze minha janela e voe pra vida.
Ele não foi.
Um raio iluminado de múltiplas cores adentrou a janela do quarto. Ambos sentiram-se cegos por alguns instantes e, quando a claridade voltou ao normal, o improvável acontecera: a menina, agora, também era pássaro.
Entreolharam-se e sentiram que era chegado o momento de alçar o maior voo de ambos até ali. Bateram asas até ganharem a mesma altura e cruzaram a janela rumo ao destino que só eles sabiam que forma teria. Só era o amor.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Das Nostalgias


Sou do tempo das coisas simples e mais gostosas da vida. De quando a gente tomava coca cola em garrafa de vidro, comia biscoito de camarãozinho na escola, sou de quando a correspondência era só via correios e a gente esperava ansiosamente pela carta.

Sou da época em que o mimeógrafo era usado para imprimir as provas escolares, a gente recebia o papel ainda molhado e cheirando a álcool. Lembro que na lista de material da minha escola tinha sempre o item: "Matriz roxa", as vezes vinha até a marca: "carbex".

Mas nada marca mais a minha infância do que a datilografia. No meu tempo, quem não tivesse curso de datilografia, era atrasado. Lembro que ao lado da minha escola havia um curso chamado "elite" e na minha cabeça infantil, enamorada e já romantizada pelos livros e pela escrita, toda e qualquer pessoa que adentrava os portais daquele maravilhoso curso, pertencia à elite, eram todos donos de um mundo mágico do qual eu não fazia parte. O barulho daquele curso era infernal e hoje mesmo ainda posso ouvir as onomatopéias das máquinas de escrever. O plec plec do teclado e o plim de quando a linha a ser escrita chegava ao fim. Era uma época em que a gente 'batia' textos e era tudo mais difícil, o "delete" era algo inimaginável.

Ah, quantas saudades desse tempo, recordo-me agora da máquina de escrever que eu ganhei quando fiz 8 anos de idade, era uma hermes baby portátil que eu guardo com carinho até hoje. Na época, custava uma pequena fortuna, foi meu  avô Adolpho quem me deu. Ele, quase um doutor em oratória dizia: - Esse meu neto será escritor e daqui sairão seus livros, também meus discursos políticos. Pobre vovô, da minha hermes baby nunca saiu nem o esboço. Eu nunca fiz um curso de datilografia, culpava isso pela minha falta de jeito em 'bater' meu livro. Mas naquela época, nos meus dourados e ingenuos oito anos, as ilusões eram permitidas e até acalentadas e eu imaginava minhas histórias publicadas em livros. As histórias se desenhavam na minha cabeça, nítidas e vívidas como meu lego e meus bonecos de comandos em ação. Minhas histórias mirabolantes cresciam em mim, eu contava e recontava, montava, remontava e desmontava quando tivesse vontade. Eram belas histórias, mas a hermes baby nunca contou nenhuma delas, nenhum sonho, nenhum devaneio.

Hoje eu olho a minha máquina de escrever, velha, sem fita de tinta, empenada, aposentada pela era digital, pela velocidade da internet, pela facilidade do delete e pela milagrosa invenção do backspace. Fico me perguntando que histórias eu escreveria naquela época. No homem de hoje, sobrou pouco do menino de outrora, no entanto a paixão pelas escritas existe. Será que se eu tivesse usado mais a minha máquina de escrever, eu teria virado um doutor das letras? Ou será que eu seria mesmo esse que hoje se senta diante de uma tela de computador e tenta parcamente reproduzir sua época mais feliz da vida?

De qualquer forma, ainda sou aquele menino de olhos curiosos, com a cabeça no mundo da lua e romântico, ainda sonho escrever meu livros, ainda quero ser um escritor, um mero contador de histórias e estórias de um mundo encantado pertencente somente a aqueles que sabem sonhar de olhos abertos.

domingo, 25 de setembro de 2011

Castanhos e verdes. Olhos.

Sentou-se na areia. Não se importou de sujar o longo vestido branco. Na verdade, pela primeira vez, não importou-se com a areia. Escutou o mar indo e vindo e o rumor como que estalou dentro de si mesma. A brisa bagunçava seu cabelo. Também não importava. Era um dia diferente e nada pequeno importava. Havia um sentimento de completude e abandono naquilo tudo. Uma amarga felicidade de quem chegou a algum lugar e parece nem ter mais aonde ir.
Fechou os olhos para sentir o cheiro liberto de sal que emanava. Cerrar visão sempre resultava em algo mais profundo na moça. Ela sentiu como um borbulhar de champagne por dentro e por pouco achou que entraria em ebulição. Respirou. Profunda e vagarosamente. Buscou abrigo nas reminiscências.
Daquele lugar, duas imagens lhe sequestravam. Sentiu-se fragmentada no rapto, mas deixou-se levar.
Viu, então, mais uma vez, aquele dia de inverno impune. Com o mar a ensurdecer as vozes. Com o vento a roubar palavras. Sentiu o cheiro almiscarado na pele próxima. Sentiu aquela sensação angustiante de não tocar, ao tocar o intocável, mesmo quando se tocaram pela primeira vez. Eles eram corpos absurdamente reconhecidos em almas distantes e rebeldes. Não se lembrava muito de tudo que veio antes ou que viria depois. Lembrava-se apenas daquele pequeno instante em que sentiu seu olhar sobre ela. Um pouco de nudez lhe vestiu a pele apenas com aquele movimento ínfimo das suas pálpebras. Talvez as mãos dele lhe houvessem tocado. Talvez tenha sentido a barba a lhe roçar o rosto. Talvez. O que ficou, foi o pousar daqueles olhos. Aqueles olhos verdes. Pela primeira vez, naquele instante, acreditou que os estudiosos de cor haviam se enganado. Verde era cor quente. Verde que derretia em ondas de lava ao olhá-la. Sentia aquele calor todo lhe inundar a alma, ainda que lhe esfriasse, o vento pelo corpo. E então, como em todas as vezes que se lembrava - quiçá tinha sido assim de fato -, sentiu um redemoinho do vento a lhe envolver as entranhas todas e olhou, mais uma vez, talvez a derradeira vez, para aqueles olhos de suas lembranças. Verde era cor fria e dele saíam pequenas lágrimas cortantes de gelo.
Raptada, como sempre, por outra memória, viu-se no mesmo lugar. A noite chegava. O sol ia embora fazendo estardalhaço em laranjas, vermelhos e roxos, impunes e contentes. Não havia música, mas ela escutava uma que lhe vinha da alma. De ambas almas. Desta vez, sentiu as mãos a lhe envolver o corpo todo. Sentiu que ele lhe sugava o perfume ávido. Ouviu as palavras todas afoitas e de calão adorável. Entregou-lhe a alma e o corpo naquele momento, sem nem saber no que ia dar. Tocáveis. Deixou que ele fosse o dono do seu corpo. Do seu sorriso satisfeito. Olhou dentro daqueles olhos de mel adocicado e sentiu-se envolvida. Aqueles castanhos seguros de si, pacientes e insistentes. Sabia que ia deixar-se ali, sem resguardo. Eram de fato, quentes, nem a ciência lhe negaria isto. O corpo todo dele corroborava o calor. Percebeu aqueles olhos de menino lhe descobrindo sorridente. Sentiu o cabelo dele entre suas mãos e sorriu. Estreitou aquele rosto conhecido e deixou-se penetrar pelos seus próprios castanhos por aqueles castanhos. Mãos e braços e pernas que queriam mantê-lo próximo, justaposto, dentro. Era primavera, mas ela não viu as flores. Era flor.
Voltou à realidade como se um fio de prata lhe puxasse de volta àquela tarde de outono. Voltou ao vestido maculado pela areia. Era o beijo na nuca que lhe trazia de volta. Sentiu o beijo lhe descer um pouco mais pelas escápulas nuas. Ouviu murmúrios inaudíveis de um sotaque conhecido. A mão direita dele lhe afastava os cabelos pra deixar a pele livre de obstáculos. Como na música, sentiu o paletó enlaçar o vestido. Então viu a mão esquerda que vinha de suas costas, pousar em seu seio esquerdo. A mão de dedos longos que ela já conhecia, desde sempre. A mão que nem se importava mais com o vestido. E sem olhar para os olhos, soube de que cor eles eram.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Aos meus amigos

A gente não sabe explicar como nasce uma amizade. Quase sempre não percebemos quando aquele conjunto de afinidades se transformou em um laço forte, indivisível. Na verdade, pouco importa o tempo da amizade, não se pode contar de forma cronológica, mas de todas as vezes que se pode contar com o outro para um abraço, uma risada, as broncas (porque amigos não nos poupam da verdade), os silêncios que não se explicam, nem precisam de justificativas.

Eu sou um homem de poucos, mas de grandes amigos. A maioria dos meus amigos são de infância e/ou de longa data, cultivo minhas amizades com esmero e muito zelo, porque acredito que amigos a gente não conquista, a gente reconhece. Os amigos que reconheci pela vida estão comigo sempre, mesmo que nossos caminhos nos coloque em outras direções, a gente sempre acaba se encontrando e participando ativamente da vida um do um do outro.

Li em algum lugar, que um amigo não precisa ter cara, basta coração enorme, olhos atentos e ouvidos solidários. Eu concordo e me lembro com isso, daqueles amigos que a tecnologia uniu, aqueles que respondem erroneamente pelo nome de amigos virtuais. São pessoas que compartilham contigo seus dias, suas vitórias, tristezas, amigos que te fazem rir e chorar e estão alí até mais próximas que muita gente do mesmo lado da tela. E eu fui agraciado nesse mundo de cliques com bons amigos.

Este blog nasceu de uma grande amizade de cliques, de gente que nunca precisou se ver pra se reconhecer. De pessoas que se amam e dizem isso sem qualquer medo de ser mal interpretado. De gente que está distante somente geograficamente, porque as almas já se encontraram há tempos. Não nos conformamos com essa distância, nem quero dizer que nos basta sermos amigos assim. Não é verdade, sentimos a falta física, e as vezes ela dói quando tudo o que precisamos é de um abraço apertado. E como precisamos disso, né? Precisamos muito disso e nem todos os abraços do mundo supriria nossa falta eterna.

Queria aqui agradecer aos meus amigos por todas as manifestações de carinho e zelo comigo em todos os momentos, mas principalmente nos mais difíceis, que são quando as amizades verdadeiras reluzem com maior brilho.

Deixo aqui meu beijo especial para as companheiras de blog: Cristiane e Amanda, para a  "namorada" Rosana Meyer e pra Claire ( maior incentivadora do meu "namoro" com a Rosana)

Amo todas vocês, por tudo.


terça-feira, 30 de agosto de 2011

A.

Minha mãe escolheu meu nome porque, segundo ela, achou o significado “forte”: “digna de ser amada”. Confesso que também o acho.
Gosto do silêncio, das paredes violeta do meu quarto, da minha bagunça organizada de livros, CDs e DVDs. Gosto das fotos espalhadas pelas paredes dele, que me fazem me lembrar de pessoas e momentos que levo sempre comigo.
Odeio acordar cedo. Gosto de ter tempo para despertar, enfiar bastante a cara no travesseiro e sentir a textura do edredom se despedindo da noite. Tenho uma mania quase doentia de não me desgrudar nunca do meu celular, que dorme comigo, na cabeceira da cama.
Acordo de mau-humor e odeio essa minha característica. Quem trabalha comigo já sabe e (às vezes) entende.
Adoro café, cerveja e água, muita água. Detesto água com gás e suco de goiaba. Não como tomate e nunca comi. Tolero no vinagrete e no molho, e só. Sou doente por chocolate e ele me serve como um alimento genérico: se estou triste, como chocolate. Se estou feliz, como chocolate. Se estou entediada, como chocolate.
Respiro música. Miles e Coltrane me fazem entrar em outra dimensão. Elis e Bethânia me levam pra dentro dos meus sentimentos mais confusos, e, nessas horas, nem sinto tanta frustração assim por ser confusa (coisa de capricorniano com ascendente em Gêmeos), só pra poder cantar com alma, mesmo que seja só pra mim mesma.
Tenho uma tendência extrema à melancolia, e, muitas vezes, sou mal-interpretada por isso pelas pessoas que vivem comigo. Sou prática, mas delicada. Romântica, mas realista. Carinhosa, mas agressiva. A garota-dicotomia.
Sinto uma alegria imensa quando ganho um sorriso de alguém assim… de graça. Sinto uma alegria imensa quando vejo que um aluno entendeu algo que acabei de ensinar. Sinto uma alegria imensa quando abro o horizonte literário-musical de alguém sem ter pretendido fazê-lo. Sinto uma alegria imensa quando vejo um artista subir ao palco, em grande parte, porque eu contribuí para tal.
Adoro abraçar e ser abraçada. Não beijo ninguém meramente por educação, realmente encosto os lábios nas bochechas alheias e já percebi que nem todo mundo vê isso com bons olhos. Adoro olhos, sorrisos e mãos, e me valho deles para entender em parte a complexidade do ser humano.
Tenho mania de ficar tentando me identificar nas músicas que escuto, e sempre separo trechos que me interessam, como se, futuramente, eles pudessem contar um pouco mais pras pessoas como é que me sinto. Adoro saber falar francês e sei que preciso estudar mais inglês. E aprender espanhol. E alemão. E música.
Ando entediada com o ser humano, mas quero acreditar que um dia isso há de passar. Minha família é tudo pra mim. Por eles, sou capaz de bater e apanhar. Meus amigos são meu porto-seguro e, sem eles, seria certamente uma pessoa muito mais áspera e amarga.
Fui uma criança adultinha, uma adolescente adultinha e sou uma adulta adultinha que se cobra o tempo inteiro. E que sofre muito por isso. Já fiz terapia. Foi bom e pretendo voltar quando sobrar uma grana.
Quando amo, amo com toda a minha verdade. Por isso meus amores são raros. Nunca fui de ter envolvimentos rasos nem amores platônicos. Sempre fiz questão de dizer ao outro tudo o que sentia; por isso, também, já fui bastante ferida.
Se os sentimentos se tornam maiores do que posso suportar dentro de mim, pego caneta, papel e escrevo. Seja por amor ou por ódio. Simplesmente escrevo; mas não me considero poeta e nem o pretendo. O poema mais verdadeiro e intenso que já escrevi foi para um grande amor que hoje está longe de mim, mas muito mais perto do que acho que ele possa imaginar. O grande amor. Grande e triste em sua medida.
Sou curiosa e adoro tecnologia.Sou mimada pela minha avó e não tenho o menor pudor de admitir isso. O maior sonho que realizei, até hoje, foi conhecer Paris, e sem gastar um único Euro.
Tenho muita fé e sei que minha sensibilidade (ou intuição, ou sei-lá-o-quê) é bem aguçada e que devo tomar cuidado com ela.
Sou vaidosa à minha maneira. Sei que nunca vou ser magra, mas valorizo o que julgo mais bonito em mim. Gosto de ser ruiva, de manter meus cabelos curtos e as unhas sempre bem cuidadas. Adoro esmalte vermelho, mas também gosto das nuances do lilás e do rosa. Acho todas as pin ups lindas e fico lisonjeada quando uso delineador, batom vermelho e me dizem que lembro uma delas.
Não sei como vivi uns bons anos sem Internet e IPod. Amo Cinema, mas não banco a entendida e assumo a todos que gostaria de saber muito mais do que sei sobre esse assunto.
Tenho um grande carinho por Santo André, mas sei que meu lugar não é aqui. Amo São Paulo, com suas nuances de cinza, de gente e de cenários. Amo muito o Rio de Janeiro e algumas pessoas que lá estão. Muito. Sinto uma saudade dolorida de lá todos os dias, sem exagero.
Quero ter pelo menos um filho e dois cães. Minha vida ficou bem mais colorida depois que adotei a Maya, minha cadela.
Sei dirigir, mas não gosto, acho estressante demais. Porém, tenho consciência de que uma hora vou ter que me render ao sistema e me jogar no volante pelas ruas.
Não sei como me imagino daqui a dez anos. Só sei que quero ser muito feliz, seja lá o que isso signifique. Um dia, eu descubro. Quem sabe. Mas quero continuar sendo, pelo menos, essa pessoa que hoje sou: cheia de amigos, de boas lembranças, rodeada de livros, de músicas e de um coração meio cheio e meio vazio, como o copo daquela metáfora gasta.


Amanda Souza
Maio/2010

quinta-feira, 14 de julho de 2011

O ecrã amargo


Acordou atordoada, com a sensação de não saber onde estava. A primeira coisa que sentiu foi vontade de fumar. Uma vontade uterina, quase. Tentou ignorar o apelo da fase oral. Lembrou-se porque estava aborrecida. Lembrou-se, exatamente, de onde vinha o motivo perturbador que lhe fazia ter picos extremos de sono e insônia. Que horas eram? A luz indicava uma semi-aurora ou um por-do-sol. Que horas havia deitado? Ignorou também esta curiosidade. De fato, sentiu desejo de ignorar tudo.
Pegou o celular que repousava ao lado da cama e abriu o jogo preferido. Absurdamente, nonsense. As bolinhas coloridas a explodir como bolhas de sabão lhe afastavam pensamentos. Bons ou ruins. A pontuação foi extraordinária, o que lhe trouxe o pensamento sarcástico: "sorte no jogo, azar no amor". Decidiu jogar mais uma vez. Certamente, não melhoraria o ardor nos olhos. Muito menos a dormência nas mãos. Jogou mais uma vez. Pontuação baixíssima. Teve vontade de rir. Aquele riso de desespero ignóbil e controlou-se. Ironicamente, uma lágrima lhe caiu dos olhos. Enxugou-a, diligentemente e notou que havia chorado em sonhos. Quis xingar. Não conseguiu. Estava sozinha e ela tinha perdido o hábito de xingar o Universo. Na verdade, tinha perdido o hábito de explodir em impropérios. Ele lhe ensinara isto. Isto, de tudo aquilo. Tantas coisas, dentre muitas.
Ela sabia o que era aquilo tudo. A ansiedade a lhe comer o fígado, a lhe perturbar as idéias, a lhe transtornar o apetite, as vontades, o sono, a clareza. A enxaqueca, em breve, bateria-lhe às portas, inquilina fiel e constante, nos últimos tempos. Olhou a cachorra, dormindo placidamente, sempre ao seu lado. Isto é lealdade, de resto nem pela dela apostaria as mãos no fogo. Espreguiçou-se e conteve-se no estiramento. Ia pinçar a coluna pelos estalos crocantes de seu esqueleto em frangalhos pelas noites mal dormidas, pela palpitação cardíaca.
Os lábios estavam ressequidos. Estava desidratada, provavelmente. Levantou-se em busca da velha coca-cola. No caminho, encontrou-o. O ecrã. Odiava aquela palavra, em suas vísceras. Encontrara o portátil, mas agora só via o ecrã. Passara a nutrir ódio por ele. Na tarde passada? Na semana passada? Não sabia. Bebeu o refrigerante, desafiando com o olhar, o eletrônico. Desligado. O estômago reclamou. Não iria comer. Sabia o que resultaria.
Pegou o maço de cigarros e sentou-se de frente para o inimigo. Acendeu o mais placidamente que podia. Sentiu que as pernas começavam a balançar, na aflição interna. Respirou. Ligou o aparelho. Observou calmamente a tela brilhante a lhe desafiar. Cruzou as pernas. Elas dormiram. Bravo! Não havia alternativa.
Então, a torrente veio e com ela a coragem. Escreveu, soluçando, o que talvez não devesse. Escreveu para si. Para limpar a alma. Quis olhar e-mails, redes sociais, mas seria inútil. Quis atravessar o maldito ecrã ao final e se transportar para onde deveria estar. Quis gritar que aquilo não fazia sentido. Mas não gritava mais. Tinha se educado, por ele, a conter o tom que o assustava, sem necessidade. Era o tom do sangue que lhe queimava, apenas, mas o que não se faz por alguém que se quer bem?
Finalmente, veio a segunda fase, temida, que ela afugentava como um mau agouro. Milhares delas pelo rosto. Quis ser outra pessoa para abraçar a si mesma. Deixou-se ir até seu limite. Ou além dele. Respirou.
Entrou na ducha, como a mãe lhe havia instruído pela vida: "Toma um banho, que passa". Vestiu-se, perfumou-se, maquiou-se. Dirigiu-se à porta e olhou ao espelho. Tudo isto para ir ao mercado?
Comprou ovos, iogurte, creme de leite e beringelas. Com "j" ou com "g"? Ao pagar, como a caixa lhe questionasse com os olhos, a demora em achar as notas, soltou, despudoradamente: "Não me julgue. Eu supero o ecrã. Não supero o que está além dele. Nem quero superar. Grata." E saiu sorrindo, amarga, mas com aquela certeza, quase vingativa, que tinha dito a verdade. Tão somente a mais pura verdade.

*ecrã: no português de Portugal, significa tela do computador, display, monitor.